SINOLOGIA E CHINESIDADE NO BRASIL
O presente artigo pretende analisar as produções sinológicas brasileiras na linha da “Chinesidade”, baseada na proposta por Tu Weiming [1991], que representam uma tentativa de compreender a cultura chinesa por meio de suas próprias bases, conceitos, e tradições. Inicialmente, faremos uma breve introdução ao problema dos estudos sínicos no Brasil, as questões relacionadas ao Esoterismo, e no seguir, iremos sugerir alguns autores que atuam nessa linha teórico-metodológica.
Das variantes sinológicas que tem se construído no Brasil atualmente, aquela baseada na “Sinidade” ou “Chinesidade” é, ainda, a menos desenvolvida. Essa situação paradoxal é derivada da trajetória dos estudos chineses no país, em geral ligada a questões contextuais e imediatistas ou a projetos políticos limitados. A ausência de uma tradição sinológica brasileira não ensejou a criação de um espaço definido de fala para a cultura chinesa de forma mais ampla e profunda.
Examinamos esse problema no texto Caminhos para uma Sinologia brasileira, no qual discutimos três possíveis vias para a futura Sinologia brasileira – a via modelar, a estratégia de “ida-e-volta” e a Chinesidade [Bueno, 2018]. De forma bem breve, a via modelar é aquela na qual a China seria utilizada como um contraponto de opções políticas, econômicas e culturais ao Brasil, não implicando em aprofundar o conhecimento dessa civilização para além do instrumental básico; na estratégia de ida-e-volta, busca-se aprender os saberes chineses, de modo a responder as questões próprias de nossa sociedade, aceitando um cruzamento de idéias e culturas, além de definir novas perspectivas epistemológicas; por fim, a via da Chinesidade significaria um estudo sistemático e aprofundado da cultura chinesa, dando voz aos seus agentes e compreendendo seus conceitos, colocando como elemento fundamental de constituição da Sinologia o próprio instrumental teórico, metodológico e lingüístico chinês.
A via da Chinesidade, portanto, traz um caráter específico ao Sinologia, invertendo o ponto de partida em relação ao objeto. Nas duas primeiras visões, a China é um elemento passivo, ao qual se diminui a distância em relação ao envolvimento que se tem com a mesma; na Chinesidade, porém, deve se buscar a China, em primeiro lugar, para entender suas estruturas e formulações, tratando nossos questionamentos como o final do processo de conhecer. Como busquei resumir;
“O intelectual chinês Tu Weiming [1991] propôs que, no contexto contemporâneo, o sentido de “ser chinês” se constitui em um paradigma em expansão e transformação, tendo em vista o fenômeno da globalização e da diáspora chinesa. A construção dessa identidade chinesa compreende a formulação de uma série de postulados ou condições que apontam para uma “essencialidade” sínica, a sua “Chinesidade”. Com base nesse axioma, a compreensão da visão chinesa a respeito do mundo constitui um ponto de partida próprio – e para acessá-lo, é necessário apreender justamente o que é essa “Chinesidade”. Como uma via sinológica, esse caminho pressupõe, portanto, uma imersão cultural, produtora de um conhecimento desvinculado do sentido “prático ou aplicável” da visão modelar. Busca-se aprender a China pela China, numa perspectiva antropológica específica” [Bueno, 2018, p.8-9].
Embora a Chinesidade tenha sido tratada como uma proposta sistemática em desenvolvimento, algumas experiências nesse sentido já tem se desenvolvido no Brasil. Nesse ensaio, gostaria de elencar e analisar alguns trabalhos sinológicos brasileiros que poderiam ser entendidos como “sínicos” - que são capazes de compreender e apresentar os elementos fundamentais do pensamento e da cultura chinesa como base de suas expressões mais amplas. Isso implica em afirmar que os autores apresentados possuem um conhecimento mais aprofundado da China, e consequentemente, suas pesquisas não se limitam a uma demanda superficial sobre temas chineses, mas sim, num entendimento e numa tradução mais sensível das matérias escolhidas. Esses pesquisadores podem, usualmente, transitar entre linhas diferentes da Sinologia; mas nossa pretensão é de apontar os caracteres de erudição sinológica que compõe suas produções.
Nesse
artigo, percorreremos o seguinte trajeto para apresentar os trabalhos sínicos
brasileiros em questão: primeiramente, faremos uma breve discussão sobre a
questão “Chinesidade x esoterismo”, tratando de especificar as diferenças entre
a abordagem sinológica sínica e a visão da China baseada em estereótipos
orientalistas; em segundo lugar, apresentaremos um breve histórico da presença
de elementos sínicos na história brasileira, mostrando pontos de aproximação
entre as duas culturas; por fim, analisaremos as expressões dessa Chinesidade
em alguns estudos brasileiros selecionados, mostrando como esta via pode ser
bastante promissora em termos acadêmicos.
Chinesidade e o
problema esotérico
Antes de elencarmos alguns estudos sínicos, é preciso estabelecer certas demarcações teóricas e metodológicas a fim de evitar confusões. No Brasil, a idéia de Chinesidade pode ser facilmente confundida com a abordagem orientalista esotérica, muito conhecida em nosso país. Como analisamos em dois textos anteriores [Bueno, 2004 e 2010], essa forma de orientalismo pretendeu compreender e apresentar as múltiplas expressões culturais, filosóficas e religiosas asiáticas como um elemento estereotipado de “superioridade cultural”, e mesmo, salvacionista. Tratando os “muitos orientes” dentro de uma lógica mística e superficial, transpuseram para a análise dessas civilizações uma visão deturpada, que projetava nelas uma opção intelectual e espiritual para a “falência moral” da sociedade ocidental do século 19, e a partir daí, sendo retomada periodicamente. Para isso, os esotéricos entenderam que trazer as artes, filosofias e religiosidades “orientais” seria a resposta para o vácuo existencial e as decepções do “mundo ocidental”.
A visão esotérica se expandiu bastante no Brasil, manifesta pelo grande número de centros dedicados a difusão de “artes orientais” como Fengshui, Ikebana, Yoga, etc. [no qual se incluíam também artes divinatórias, como Tarô, Búzios, Baralho Cigano, entre outras, que nada tinham de “oriental”], bem como pelo significativo número de obras que praticamente definiram o gênero da “auto-ajuda” nas livrarias. Esse movimento - mais recentemente denominado, de forma genérica, de “Nova Era”- açambarca diversas vertentes, numa profusão de correntes intelectuais, apropriações e misturas que, via de regra, descaracterizavam por completo as artes e ciências asiáticas. As artes marciais podem ser igualmente inseridas nesse contexto. Embora houvesse mestres asiáticos sérios, autorizados a representar suas escolas em nosso país, um número significativo de profissionais brasileiros formados nesse campo desconhecia elementos mais profundos da história do extremo oriente, reproduziam estereótipos e [pretensas] tradições sem quaisquer questionamentos críticos e, por fim, promoveram versões absolutamente superficiais e equivocadas dessas expressões culturais, alimentando a formação de um senso comum cheio de fantasias e preconceitos contra os “orientais”.
No entanto, se questionados, provavelmente muitos desses “mestres” provavelmente se arrogariam uma autoridade legítima sobre as culturas e histórias asiáticas, entendendo que sua aproximação com uma “Chinesidade” [no caso da China] seria autêntica.
Isso ocorre pelo quase total desconhecimento que se tem sobre a história e cultura chinesa em nosso país. Proprietários de fragmentos de conhecimento, organizados em um conjunto disperso e confuso, que se confunde facilmente com o senso comum, muitos desses profissionais conhece pouco mais sobre China do que aquilo que, de fato, se propaga em obras de divulgação. Obviamente, não se pode exigir do público em geral um conhecimento mais aprofundado como aquele que integra a formação do sinólogo; mas o problemático provérbio brasileiro “não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe” parece valer como uma afirmação dogmática em relação aos estudiosos da civilização chinesa. Raríssimas vezes encontraremos “especialistas” esotéricos capazes de indicar ou citar obras qualificadas de sinólogos. Basta ver qualquer sugestão bibliográfica desses profissionais para compreender as suas limitações em sentido mais amplo.
Assim, é necessário delimitar essa diferença categórica entre os que promovem um estudo sínico sério e aqueles que repetem as falácias esotéricas. Invocar uma determinada autoridade sobre a cultura e a história chinesa exige o domínio de instrumentos, fontes e bibliografia especializada, que asseguram a qualidade e a seriedade de suas produções. O surgimento de sinólogos brasileiros capazes de dar conta destas demandas tem permitido que muitos especialistas antes classificáveis como “esotéricos” possam abandonar essas visões circunscritas; todavia, a busca por uma qualificação mais séria em nosso país ainda é uma opção limitada, seja pelo número de especialistas, seja pela disposição dos profissionais “esotéricos” em sair de seu lócus.
Elementos de uma
Chinesidade no Brasil
Precisamos, pois, identificar os materiais que podem constituir uma legítima Chinesidade em nosso contexto histórico, de modo a escapar das armadilhas esotéricas. Mesmo que o Brasil não tenha recebido levas maciças de imigrantes chineses até o século 20, podemos afirmar que nossa cultura e sociedade hauriram contribuições importantes advindas da China. O primeiro intelectual a identificar essa presença “oriental” em nossa civilização foi Gilberto Freyre, que chamou a atenção para a circularidade de informações e experiências no mundo colonial lusófono. Em vários ensaios, que foram reunidos na coletânea China Tropical [Freyre, 2011], Freyre destacava a presença material, artística e intelectual que compunha o desenvolvimento da cultura brasileira.
José Roberto Leite, em seu basilar trabalho A China no Brasil [1999], reconstituiu o rico quadro da presença chinesa no país, desde reminiscências dispersas na arte e na cultura a chegada de chineses ao país para plantar chá em 1812, até períodos mais recentes. Um exame mais cuidadoso da história brasileira mostra, na verdade, que nosso país estava inserido nesse sistema mundial criado pelo império português, por onde circulavam pessoas e informações de forma incessante. O livro Um Mundo em Movimento, de Russel-Wood [2006] mostra que diversas personagens transitavam entre Brasil, Macau, África e Portugal, proporcionando um fértil dinamismo nas relações culturais. Isso pode constatado, no caso chinês, por algumas citações ilustrativas. Almeida [1879, p.102], por exemplo, encontrou um mercador brasileiro em Cingapura, que defendia a vinda dos “chins” para o Brasil; Lisboa [1881, p.28] nos informa que o cozinheiro de seu navio, João, era um chinês que morou durante anos no Brasil, até poder voltar para a terra natal; Czepula [2017, p.100-02], ao analisar os periódicos cariocas nos anos de 1870, mostra que os chineses eram usualmente citados nas colunas jornalísticas, surgindo como aculturados na sociedade carioca. Araujo [2015] nos informa sobre a vinda mais intensa de chineses no século 20, caracterizando um novo e importante movimento migratório. Lesser [2001] estudou, ainda, a negociação e a formação das identidades asiáticas no Brasil, suas polêmicas e trânsitos.
Com
os imigrantes – todos difusores da cultura chinesa no Brasil – vieram as
evidentes contribuições, atualizadas, dos saberes e percepções tradicionais. A
partir do contato fértil entre esses personagens e estudiosos brasileiros,
desenham-se as primeiras produções sínicas, proporcionando uma nova via de
entendimento acerca da civilização chinesa. Na próxima seção, descreveremos
alguns autores e suas produções, de maneira a proporcionar um quadro rápido
sobre o desenvolvimento dessa linha no Brasil.
Produções
brasileiras na via da Chinesidade
Nessa última parte, como dissemos, relacionaremos alguns pesquisadores brasileiros cujos trabalhos classificamos, dentro de nossa proposta, como inseridos na perspectiva da Chinesidade. Lembremos dos critérios fundamentais que regem essa escolha: um conhecimento qualificado da cultura chinesa; uma compreensão da mesma feita com base em suas próprias percepções filosóficas e intelectuais; e a busca por traduzir esses conteúdos de forma mais apropriada e fiel possível, tentando transmitir seus sentidos originais ao entendimento do público brasileiro. Essa seleção não é completa nem exaustiva, mas pretende apontar alguns caminhos relevantes para a pesquisa.
Em primeiro lugar, é necessário relembrar sempre o trabalho absolutamente pioneiro e fundamental de Ricardo Joppert. Autor de uma produção ampla, da qual podemos destacar O Alicerce Cultural da China [1979], Porcelana Chinesa [1985] e o Samadhi em Verde e Azul [1983], Joppert foi o primeiro sinólogo brasileiro de formação, aprofundando-se no estudo da arte chinesa. Sua trajetória de vida está intimamente ligada ao estudo da China, tendo atuado tanto na área acadêmica quanto nas relações internacionais. É um conhecedor ímpar das tradições estéticas chinesas, sendo inclusive reconhecido em França e Taiwan como um grande especialista.
No campo da literatura, um núcleo de excelência em relação à China foi construído, ao longo da década de 80 e 90, na Universidade de São Paulo. Dos profissionais de seus quadros, podemos destacar Mário Bruno Sproviero, autor de uma tradução profunda e consciente do Daodejing [2002], além de vários artigos sobre pensamento chinês; e Antônio José Bezerra de Menezes Junior [2013], cujos estudos e traduções são permeados por um conhecimento de escol sobre textos tradicionais. Outros autores importantes nesse campo são Giorgio Sinedino, cuja versão do Lunyu [Analectos, 2012] e do Daodejing [2016] são marcos na tradução de clássicos chineses no Brasil. Sinedino publicou também um substancial conjunto de traduções e textos excelentes na Revista de Cultura do ICM [Instituto Cultural de Macau], tendo se tornado uma referência. Márcia Schmaltz [1963-2018], tradutora que viveu em Taiwan durante muitos anos de sua vida, e cujo conhecimento da língua chinesa era único em seus níveis de excelência, trouxe para nosso ambiente literário traduções magníficas de contos chineses [2010], bem como de obras da literatura contemporânea chinesa. André Bueno, sinólogo com formação em história e filosofia, realizou algumas versões de textos chineses dentro dessa linha, dos quais se destacam o Zhong Yong [Justa Medida, 2005], Lunyu [As Lições do mestre, 2016] e o Sunzi Bingfa [Arte da Guerra de Sunzi, 2012]. Seu principal trabalho, porém, tem sido a vinculação do Projeto Orientalismo [www.orientalismo.site], dedicado a divulgação de materiais sobre história e cultura de China, Japão e Índia antiga.
Em outros campos, temos pesquisadores igualmente capacitados para lidarem com questões complexas em relação à cultura chinesa. Tradicionalmente, a academia separa as inferências sobre a China no que diz respeito as suas filosofias e suas religiosidades. Do ponto de vista metodológico, essa separação parte da construção epistemológica e teórica que permeia a formação desses cursos na visão do currículo eurocêntrico. No entanto, essas separações podem ser limitantes, ao lidarmos com o ambiente sinológico. Tal como no Europa, que durante séculos conheceu uma filosofia permeada de religiosidade, algo análogo pode ser pensado em relação às tradições chinesas. As dificuldades e indefinições sobre como lidar com esses temas mostram a extrema sutileza e sensibilidade, além de um apurado conhecimento teórico, que o pesquisador deve ter para abordar as experiências chinesas.
Um autor de relevado destaque nesse sentido é Bony Schachter, sinólogo brasileiro com formação universitária na China, e que atualmente leciona sobre Daoísmo na Fudan University – feito notável, que o insere numa restrita categoria de professores estrangeiros que ensinam estudos chineses no próprio país. Schachter fez traduções inéditas de textos daoístas, e foi o primeiro brasileiro a publicar na renomada Monumenta Serica, um dos periódicos mais renomados e antigos na área da Sinologia [Schachter, 2014]. Sua pesquisa o coloca em um seleto grupo internacional de pesquisadores, mostrando que suas contribuições têm um alto nível de qualidade acadêmica.
No Brasil, o trabalho Daoísmo Tropical [2016], de Matheus Oliva da Costa, é um dos excelentes exemplos de como lidar com essas questões. Analisando a recepção do pensamento daoísta no Brasil, Matheus consegue conciliar as demandas acadêmicas [em termos teóricos e metodológicos] com uma abordagem sínica consciente e muito bem estruturada. Ademais, seus outros trabalhos respondem às demandas de ambas as áreas [filosofia e ciência da religião], proporcionando materiais substanciais para a Sinologia brasileira. No mesmo sentido, outro autor dedicou-se da mesma forma a uma análise acadêmica do Daoísmo, contemplando, porém, outros campos. Matheus Zica organizou uma coleção de ensaios [com vários autores] sobre artes marciais e visuais inspiradas no conceito de Dao, e publicada sobre o título de Daoismo, Estéticas Chinesas & Outras Artes [2019], que aumentam o escopo desse campo. Gostaríamos ainda de incluir nessa relação Jorge Vulibrun, argentino, mas que atua no Brasil há décadas, e produziu um relevante material sinológico em português. Sua especialização se dirige ao estudo e ao entendimento do complexo Yijing [Tratado das Mutações], cuja abordagem é única no Brasil. Apesar de ser um livro muito consultado como oráculo, o Yijing é pouco conhecido por seus aspectos científicos e filosóficos dentro do pensamento chinês. Seu trabalho está disponível no site www.yijingorienta.com.br. Além de Vulibrun, somente a tradutora Alayde Mutzenbecher [2010] conseguiu realizar uma abordagem sínica qualificada do livro, proporcionando uma tradução excelente para nossa língua.
Outro campo de difícil abordagem no Brasil tem sido o das práticas físicas, notadamente aquelas denominadas de Artes Marciais. As tradições de luta têm sido recebidas, no Brasil, de forma complexa e conflituosa. O problema fundamental é a definição de seu espaço e inserção no ambiente acadêmico [Educação física? Ciências da saúde? Patrimônio imaterial?], que tem gerado disputas e indefinições. Ademais – como citamos no início – a inserção das artes marciais em nosso país não se deu por via acadêmica, mas sim, por iniciativas isoladas de mestres vindos de Ásia e/ou de brasileiros. A questão da qualificação desses profissionais também é objeto de amplo debate.
Esse quadro problemático dificultou bastante a reconstrução histórica e antropológica das artes marciais chinesas no Brasil, bem como sua compreensão sínica legítima. Como propusemos, a via da Chinesidade pressupõe uma abordagem a partir das tradições chinesas, o que durante muito tempo foi dificultado pelas próprias fontes disponíveis em nossa sociedade. Todavia, o trabalho de Rodrigo Wollf Apolloni [2004] veio a suprir essa lacuna importante no conhecimento sinológico brasileiro. Calcado em um conhecimento profundo das artes chinesas, sua produção é referencial, proporcionando uma abordagem científica e afastada das mistificações esotéricas que cercam a área. Pode-se dizer que Apolloni consegiu, de fato, transportar e traduzir o rico mundo das artes de combate chinesas para o ambiente universitário.
Outra área, cujo acesso tem sido muito dificultado por conta dos especialistas de última hora, é o da Medicina Tradicional Chinesa [MTC], que enfrenta pontualmente forte oposição por parte da medicina formada na academia. Em certa medida, essa atitude era compreensível: muitos “especialistas” que se apresentaram como conhecedores em “medicina chinesa” se basearam, por muito tempo, na ausência de um conhecimento mais profundo sobre a MTC, para exercer sua “autoridade” nesse campo. Aproximando-se, não raro, do paradigma esotérico, apresentam-se usualmente como especialistas, também, nas mais diversas artes chinesas – artes marciais, culinária, fitoterapia, decoração, horóscopo chinês, etc. Não nos cumpre aqui elencar ou avaliar a totalidade dos profissionais nesse campo, sejam eles realmente qualificados ou não: mas podemos, efetivamente, indicar alguns estudiosos e iniciativas que consideramos sérias, e reconhecidas, capazes de nos fornecer uma base segura para os estudos sínicos na área da MTC.
No
âmbito das traduções de textos clássicos sobre medicina chinesa, o trabalho
pioneiro de Ephraim Medeiros é, com certeza, uma das mais seguranças e ricas
fontes sobre MTC no país, apresentando um material significativo para estudo e
compreensão das tradições autênticas desse campo de conhecimento. Toda sua
produção, em andamento, está disponível no site Medicina Chinesa Clássica [Ver
link nas Referências]. Um de seus colaboradores é Luis Junqueira [2018],
atualmente residindo na China, que também realiza importantes traduções da medicina
chinesa, publicando uma, inclusive, na já citada Monumenta Serica [sendo o segundo brasileiro a publicar na mesma,
após o caminho aberto por Schachter]. É preciso ainda destacar os importantes
trabalhos de Eduardo Souza & Madel Luz [2011], Maria Inês Roland &
Reinaldo Gianini [2013], Octávio Contatore, Charles Tesser e Nelson Barros
[2018], sobre Epistemologia médica e história da Medina chinesa no Brasil; o
diálogo interdisciplinar realizados pelos mesmo é indispensável para pensar o
futuro dessas práticas no país.
Conclusões
Como
vimos, esse conjunto de indicações não poderia cobrir, por completo, o número
de sinólogos brasileiros que poderíamos incluir na perspectiva da Chinesidade.
Todavia, os pesquisadores nesse campo de estudos continuam dispersos,
transitando entre possibilidades distintas, respondendo aos mais diversos tipos
de demanda acadêmica e ainda incertos, muitas vezes, quanto ao futuro de seus
investimentos nesse campo.
Sendo uma dos possíveis caminhos para os estudos sinológicos, a Chinesidade não pode ser considerada, portanto, como a única via de acesso aos estudos chineses. Devemos notar, porém, que o conhecimento das tradições, da língua e da cultura chinesa tem sido o diferencial na análise da China – da antiga a contemporânea –, afastando-nos dos perigos das análises imediatistas e incompletas.
De
certa forma, os envolvidos nessa estratégia de conhecimento sobre a China já
perceberam que, sem compreender melhor a civilização chinesa em suas estruturas
milenares, nossas perspectivas e compreensões sobre a mesma tornam-se
incompletas e por vezes, equivocadas. Um sinólogo especializado na Chinesidade
pode transitar entre outros domínios sinológicos, propondo respostas
estratégicas ou novas construções epistemológicas. Contudo, a construção de uma Sinologia brasileira,
afastada de esoterismos ou academicismos estéreis e preconceituosos, exige que
realmente sejamos capazes de nos afastar de modismos ou análises superficiais.
Os autores aqui apresentados representam, efetivamente, o conjunto de ações,
muitas vezes solitárias, que tem sido feitas em busca de um autêntico
conhecimento sobre a China, isento de sinofilias imedidas ou sinofobias
preconceituosas. Abre-se o panorama acadêmico para uma real inserção da China
em nossos estudos universitários, nos mais diversos campos: e cumpre aos poucos
habilitados propor essas opções para o futuro que se descortina, em busca de
uma verdadeira universidade [universalista] brasileira.
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Olá professor Bueno! Satisfação.
ResponderExcluiro senhor consegue estabelecer uma correlação entre a ausência de conhecimento sobre a cultura chinesa e, ao aprofundamento para se conhecer a mesma á um estereótipo de "exotismo"? Tomo como base desta pergunta, um parágrafo de seu artigo: "A visão esotérica se expandiu bastante no Brasil, manifesta pelo grande número de centros dedicados a difusão de “artes orientais” como Fengshui, Ikebana, Yoga, etc. [no qual se incluíam também artes divinatórias, como Tarô, Búzios, Baralho Cigano, entre outras, que nada tinham de “oriental”]..."
Oi Allef, obrigado pela pergunta!
ExcluirCom certeza... onde não há um conhecimento construído, se abre brechas para o 'desconhecido'. O fascínio do 'Oriente' - e no caso da China, principalmente - tem relação direta com o encantamento da superfície. Até mesmo no caso das artes tradicionais, há muita fantasia envolvendo o debate sério.
saudações!
André
Olá, professor.
ResponderExcluirObrigado por esse texto incrível que deixa claro não só uma metodologia, como se cria uma espécie de laço dentro da comunidade sinológica, em que muitas vezes desconhecemos nossos próprios colegas! Quando trabalhamos em cima das "três possíveis vias para a futura Sinologia brasileira" (a via modelar, a estratégia de “ida-e-volta” e a Chinesidade), o senhor acredita que sejam formas evolutivads de encarar o objeto, em que a Chinesidade seria o último estágio? Pergunto isto, pois acredito que os currículos acadêmicos estão finalmente iniciando um processo de descentralização, todavia, acho invevitável, ainda mais neste momento, o uso de paralelos entre as duas culturas, Chinesa e Europeia, em busca de um entendimento maior. Até mesmo para futuros sinólogos, uma vez que iniciam suas pesquisas dentro de um ambiente eurocentrado.
Gratidão!
Thiago Wang
Caro Thiago, obrigado por sua pergunta.
ExcluirEntendo que as três vias continuarão a existir, pois elas partes de princípios fundadores. A Chinesidade será, provavelmente, o fim último de quem se pretende sinólogo; mas linhas de pesquisa estratégicas, como os estudos chineses norte-americanos, entendem que os conteúdos cumprem fins e são instrumentais; ou seja, aprender sobre a China é uma ferramenta necessária a diplomacia, e não um fim em si. Penso que a questão crucial é de haver um paradigma dominante, que subtraia as possibilidades de existir dos outros [no mesmo EUA, por exemplo, há ampla liberdade para se qualificar em antiguidade chinesa, por exemplo, sem questionamentos de ordem prática]. No Brasil, o paradigma do 'útil', ligado a uma ideia mercadológica e política, tem tornado o estudo da China majoritariamente superficial e imediatista. É preciso criar novas aberturas, como essa que ora discutimos. =)
saudações,
André
Olá Professor André Bueno, fico muito feliz em mais uma vez poder ler algum material seu!
ResponderExcluirLendo o texto, fiquei curiosa sobre os três termos que foram apresentados: a via modelar, ida-e-volta e a Chinesidade. Achei bem interessante a proposta desses termos e mais ainda ao que deu título ao artigo presente.
Como citado em seu texto, é falado o modo de compreender não só a China, como também outros campos de estudos asiáticos, não deve ser resumida a apenas um ponto específico, devemos abranger mais nosso olhares e a partir disso poderemos ter uma visão completa e consequentemente a distribuição do conhecimento fica mais rica, e não fica propensa a ter certos preconceitos que os estudos asiáticos tem hoje em dia!
Qual a sua opinião a respeito desse preconceito enraizado a respeito dos conhecimentos chineses (ou asiáticos)? O senhor acha que com o covid-19, o interesse por estudos chineses e consequentemente o aprofundamento da chamada Chinesidade pode ficar ofuscada?
- Eduarda Christine Souza Pucci
Cara Eduarda, obrigada pela pergunta!
ExcluirTema atual, e urgente. A COVID abriu a caixa de Pandora dos nossos preconceitos e racismos. A maior parte dos brasileiros descobriu - e segue sendo - racista com os asiáticos também. Mas toda a crise abre portas. Se por um lado, os radicalismos foram despertos, a necessidade de conhecimento desemperrou as iniciativas de estudo que estavam paradas. Nesse sentido, a Chinesidade se apresenta como opção a ser descoberta e contemplada.
saudações,
André
Prezado professor André Bueno,
ResponderExcluirFoi muito boa a leitura do teu artigo, que não só fornece importante balanço sobre o estado da arte como ainda ilustra de forma bastante clara, através da discussão sobre a Chinesidade, os esforços que você tem feito no sentido de estimular uma compreensão mais aprofundada da cultura chinesa e uma tradição de estudos sinológicos e orientalistas.
Como historiador e professor de jiu-jitsu, achei bastante instigante tua provocação sobre o papel dos mestres de artes marciais na reprodução de estereótipos "esotéricos". Não conhecia o trabalho do Apolloni que você cita. Embora eu estude as artes marciais japonesas, esta é uma boa referência num campo de escassa produção acadêmica.
Acredito que, embora a perspectiva da Chinesidade pareça mesmo mais adequada à sinologia, penso que ela pode ser conciliada também com a perspectiva de ida-e-volta, principalmente, se pensamos no diálogo acadêmico com os pesquisadores da história do Brasil e com o grande público, ou ainda na atuação extensionista da universidade. Nesse diálogo com o grande público, usar a categoria "esotéricos" para se referir a certos trabalhos e esterótipos é útil. No entanto, do ponto de vista da compreensão mais aprofundada do budismo ou das artes marciais, o termo deve ser caracterizado a partir da relação entre conhecimentos esotéricos e exotéricos.
Por fim, gostaria de propor que pensasse a passagem em que você comenta que os mestres de artes marciais se "arrogariam uma autoridade legítima sobre as culturas e histórias asiáticas, entendendo que sua aproximação com uma “Chinesidade” [no caso da China] seria autêntica". Enquanto pesquisador e cultor de jiu-jitsu e judô, sei que a atividade prática, a repetição de exercícios e técnicas e a imersão nos treinamentos levam a um tipo de aprendizado valorizado pelas culturas orientais. Na filosofia do judô, podemos desenvolver ou nos apropriar de conceitos fundamentais, desenvolvendo o espírito do judô, através da repetição. Isso me parece, de fato, uma aproximação autêntica à cultura japonesa, embora certamente distinta, da aproximação acadêmica (que talvez careça da prática, ou de Monozukuri).
Cordialmente, Guilherme Babo Sedlacek.
Caro Guilherme, obrigado por sua pergunta!
ExcluirA questão sobre a reprodução de estereótipos diz respeito a reprodução das narrativas históricas e tradicionais. Posso dar dois exemplos do que quero dizer, apenas para ilustrar a explicação. Uma vez, vi um professor de kung-fu usar pneus de caminhão pra treinar chutes. Até aí nada demais. O problema foi ele afirmar, categoricamente, que foram os chineses que haviam inventado o pneu de caminhão desde a antiguidade!!! Sim, essa narrativa é desconexa e anacrônica, sem fundamento, mas era repetida como como se fosse verdade. Como foi o segundo caso que aqui ilustro: a perguntar sobre a questão da cronologia de uma família de kung-fu, o professor mostrou uma genealogia estruturada de maneira a dar sentido a transmissão de saberes. Novamente, e até aí, OK. O problema é que um dos mestres listados vivera antes mesmo de Shaolin, embora se dissesse que o estilo era 'Shaolin'. Quando questionado sobre isso, recebi a seguinte resposta tautológica: 'o mestre só me contou o que é a verdade; e se ele falou é verdade, porque ele é mestre, e mestre só fala a verdade'. Poderia fazer uma lista enorme de exemplos, mas penso que esses já bastam para ilustrar a ideia central [continua]
Uma aproximação sem base histórica ou cultural legítima, sem domínio do idioma, será sempre uma tentativa superficial, que repete estereótipos e criações que em nada contribuem para uma compreensão mais profunda do Outro. O problema dessa postura é no que ela resulta. Há professores de artes marciais que entendem que devem se envolver com religiões chinesas por causa da prática [veja o caso de uma reação notável, a criação de uma escola de 'Pa-Kua cristão']. Do mesmo modo, no âmbito acadêmico, o conhecimento superficial das raízes pode levar a decisões desastradas no campo político ou educacional. Treino e conhecimento há, em todas as atividades, e a aproximação com essas mesmas raízes se dá pelo empenho e desejo de conhecer que alguém deposita na sua atividade de estudo.
Excluirsaudações,
André
PS: Senti falta da referência do texto do Tu Weiming, que é central no texto.
ResponderExcluirTU, Wei Ming. Cultural China: The Periphery as the Center. Daedalus, Spring 1991.
Excluirlink: http://tuweiming.net/wp-content/uploads/2019/05/20025372-Daedalus-The-Periphery-as-the-Center-Tu-Weiming.pdf
na versão em livro, vou inserir a referência. É uma boa sugestão. obrigado! =)