Bruno Stori

 

ORIENTALISMO, COLONIALISMO E FASCISMO NA ÓPERA “TURANDOT” (1924), DE GIACOMO PUCCINI


 

Introdução

A ópera “Turandot”, de autoria do compositor italiano Giacomo Puccini (1858–1924),  estreou em 25 de abril de 1926, no Teatro alla Scala, em Milão. Ambientada numa mítica China antiga, ela conta a história da princesa Turandot, que havia jurado jamais se casar para vingar sua antepassada, a princesa Lo-u-Ling, assassinada pelos tártaros numa invasão à China. Como o casamento era obrigatório para assegurar a continuidade da dinastia, ela aceita ser desposada por um príncipe, mas com uma condição: os pretendentes deveriam responder três enigmas. Aquele que acertasse as três charadas casaria com a princesa, e aquele que falhasse era decapitado.

Um príncipe persa havia tentado decifrar os enigmas, mas fracassou, e milhares de pessoas haviam se reunido para assistir à sua execução pública em frente ao palácio imperial de Pequim. No meio da multidão, está Timur, rei tártaro exilado, sua solícita escrava Liù, e Calaf, o Príncipe Desconhecido e filho de Timur, que ali reencontra o pai há anos dado como morto.

Quando Turandot aparece rapidamente para sentenciar à morte o príncipe da Pérsia, Calaf se apaixona pela princesa, e, arrebatado por sua beleza, decide passar pelas três charadas para casar com Turandot. Nada é capaz de fazer o Príncipe desistir de seu objetivo, sejam as súplicas de seu pai e de Liù, sejam as advertências dos três ministros do governo imperial, Ping, Pang e Pong, de que a princesa não terá misericórdia.

Calaf encontra o imperador e Turandot, que conta as três charadas a quem ela pensa que será apenas mais um de seus inúmeros pretendentes que foram mortos. Contudo, o Príncipe Desconhecido decifra os três enigmas, para o desespero da princesa. Turandot, exasperada, suplica a seu pai para que impeça o casamento, mas Calaf faz uma proposta: ela deveria, até o amanhecer, descobrir seu nome. Se ela respondesse corretamente, ele seria morto; caso contrário, eles se casariam.

Turandot, temendo por seu futuro, ordena que os cidadãos de Pequim não durmam até que o nome do pretendente seja descoberto. Ping, Pang e Pong chegam a oferecer mulheres e riquezas para Calaf, para que ele abandone sua pretensão, mas a única coisa que importa ao Príncipe é desposar Turandot. Timur e a escrava Liù são levados à presença da princesa, que interroga os dois sobre a identidade de Calaf. Liù afirma que sabe o nome do Príncipe, mas se recusa a contar. Turandot ordena que a escrava seja torturada, mas Liù, resistindo à tortura, revela que ama Calaf, e então comete suicídio para salvar seu grande amor.

Chega a alvorada, e Turandot falhou em decifrar o nome do Príncipe. Calaf tenta convencê-la de que o casamento será bom para os dois, beija-a à força e revela sua identidade. Então, a princesa, antes sedenta de sangue, descobre sua paixão dormente pelo Príncipe, e alegremente aceita se casar com Calaf. Ao contar o nome de seu futuro marido ao imperador, o chama de “amor”.

“Turandot” é considerada a última ópera de uma longeva tradição operística italiana, cujas origens remontam ao século XVII. Teve grande repercussão após sua estreia, e é uma das obras mais famosas de Puccini. Contudo, sendo um romance ocidental ambientado na China, não está livre do orientalismo da época. O objetivo deste texto, portanto, é fazer uma breve análise de “Turandot”, explorando algumas características orientalistas em sua história e música, e estabelecendo relações entre a ópera e o contexto político no qual foi composta, marcado pelo colonialismo e pelo regime fascista italiano.

 

Breve histórico de “Turandot”

Em 1920, Giacomo Puccini e seus libretistas Giuseppe Adami e Renato Simoni aceitaram produzir uma ópera. Seu trabalho foi baseado na peça “Turandot”, de Carlo Gozzi (1761), uma commedia dell’arte (gênero de teatro popular italiano). O compositor não era o primeiro a escrever uma versão da história da princesa; à época, já havia aproximadamente doze óperas e peças homônimas, a maioria do século XIX (YU, 2018, p. 115). No entanto, a história em si é séculos mais antiga.

Carlo Gozzi escreveu sua commedia dell’arte inspirando-se no livro Les Mille et un jours (1712), de François Pétis de la Croix, orientalista francês. O escrito de De la Croix trata-se de uma tradução para o francês do livro persa Os mil e um dias. Por sua vez, Os mil e um dias é uma compilação de textos folclóricos de autoria de Nizami Ganjavi, que viveu no século XII. Nesta obra, há referência a uma princesa chamada Turandot.

Do século XII às versões europeias do XVIII em diante, a história sofreu grandes alterações devido ao processo de tradução e também para que a trama se encaixasse nos gêneros teatrais e operísticos ocidentais. Da Ásia Central, a trama é transportada para a “Antiga China”, personagens são cortados e incluídos, e elementos da história são adicionados para agradar aos padrões europeus. Há diferenças mesmo entre a peça de teatro de Gozzi e a ópera de Puccini. Uma das mais importantes delas é a substituição de uma princesa tártara pela escrava Liù, criada especialmente para a ópera (LIAO, 1990, p. 50).

Após quatro anos trabalhando com a ópera, o compositor faleceu em 1924, deixando-a incompleta. Franco Alfano, com base nos rascunhos de Puccini, escreveu o trecho que faltava (do momento após a morte de Liù ao final). “Turandot” tornou-se famosa por ser a última ópera de Puccini e, principalmente, por ser um espetáculo de erotismo e violência num cenário que mais lembra chinoiserie (imitação europeia de estilos artísticos chineses) do que a cultura chinesa propriamente dita.

Apesar de algumas divergências, a ópera segue alguns padrões de personagens e tramas presentes em outras obras de Puccini, elencados por Sandra Corse: o protagonista masculino, que anseia pela posse de uma mulher; a mulher doce e submissa que ama profundamente o protagonista, e que por esse amor sofre e morre; e a mulher cruel que resiste ao amor, mas que ao final se transforma e se rende ao homem que a deseja (CORSE, 1983, p. 102). Nesses moldes, “Turandot” delineia uma história situada num Oriente sedutor e libidinoso, mas ao mesmo tempo impiedoso e violento, e demonstra explicitamente o entendimento ambíguo que os europeus tinham da China: uma grande nação com uma história milenar, mas cujo povo era bárbaro e imoral.

Seguindo esse raciocínio, é possível identificar na trama da ópera paralelos colonialistas que remetem à ideia do “fardo do homem branco”: o Oriente, feminilizado e selvagem, é dominado e civilizado pelo europeu masculino, da mesma forma que Calaf (ainda que seja tártaro) triunfa sobre Turandot (YU, 2018, p. 117). O Príncipe Desconhecido é apresentado repetidas vezes ao longo da ópera como uma figura corajosa e determinada a derreter o coração gelado da princesa. Já Turandot é desumana e perversa por assassinar seus pretendentes. Sua rebeldia é um perigo para a continuidade da dinastia e das tradições chinesas, já que não quer seguir seu destino como futura rainha por capricho e vingança contra os estrangeiros.

Na história, a postura da princesa é o símbolo da decadência da China. O povo, representado pelo coro, anseia pelo sangue dos pretendentes, enquanto a burocracia imperial se corrompeu. Isso é explorado por meio dos ministros Ping, Pang e Pong, que não apenas têm nomes caricatos, mas também seguem o arquétipo clássico do sábio confuciano chinês. Servindo como uma espécie de alívio cômico, os três personagens se intitulam guardiões das “tradições milenares chinesas” ao mesmo tempo em que zombam de Turandot e da situação do país:

 

O China, o China,

che or sussulti e trasecoli inquieta!

Come dormivi lieta,

gonfia dei tuoi settantamila secoli! 

Tutto andava secondo

I' antichissima regola del mondo... 

Poi nacque Turandot...

E sono anni che le nostre feste

si riducono a gioie come queste:

tre battute di gong, tre indovinelli,

e giù teste! [...] (PUCCINI, 1926, p. 39)

 

[Ó China, ó China,

que hoje se sobressalta e vacila inquieta!

Como dormia feliz,

orgulhosa dos seus setenta mil séculos!

Tudo caminhava segundo 

A antiquíssima regra do mundo

Então nasceu Turandot…

E faz anos que as nossas festas 

se resumem a alegrias como essa:

três batidas de gongo, três enigmas

e abaixo cabeças!]


Por sua vez, quando analisamos Calaf, sua intenção de casar-se com a princesa a todo custo pode soar agressiva. Isso é “amenizado” quando o personagem demonstra sua honra se recusando a desposar Turandot à força: “Ti voglio tutta ardente d'amor” (“Te quero toda ardente de amor”) (PUCCINI, 1926, p. 57). Ele a terá, mas apenas quando ela voluntariamente se submeter. Essa transformação da princesa é catalisada tanto pelo sacrifício de Liù (um dos momentos mais dramáticos da ópera, quando todos testemunham a prova de amor da escrava por seu senhor), quanto na hora em que Calaf força o beijo em Turandot. A partir destes acontecimentos, quando a violência e o teor sexual culminam, é que a princesa muda sua percepção e se deixa ser tomada pela paixão. Quando Calaf revela sua identidade, não tem mais medo da morte, pois sabe que Turandot já não deseja mais violência (CORSE, 1983, p. 105).

 

Orientalismo musical

Normalmente, as apresentações de “Turandot” lançam mão de cenários monumentais, figurinos detalhados e coreografias elaboradas, na intenção de reproduzir uma atmosfera genuinamente oriental para a ópera. O próprio Puccini recorreu a alguns elementos que remetessem à cultura chinesa. Dentre esses recursos, estão alguns motivos musicais e melodias tradicionais que foram incorporadas à partitura da ópera. O compositor não apenas usou música chinesa, mas também inseriu instrumentos chineses na orquestração, como o gongo chinês e o xilofone (LIAO, 1990, p. 54).

Essa tentativa de aproximação com o Oriente por meio da música não surgiu com “Turandot”. Puccini já havia feito coisa semelhante em “Madame Butterfly” (ópera de 1904 ambientada no Japão), bem como outros compositores antes dele, como Mozart, Beethoven, Saint-Saëns, Tchaikovsky ou Rimsky-Korsakov. Esse orientalismo musical remonta ao século XVIII, quando estilos e motivos musicais associados ao Oriente eram acrescentados nas composições para dar um ar “exótico”. Tais composições estavam mais relacionadas entre si do que com música oriental propriamente dita, já que não havia distinção entre as diferentes culturas e etnias asiáticas, e o estilo dito oriental valia para o Oriente como um todo. Derek Scott enumera algumas características do orientalismo musical: escalas pentatônicas, recursos harmônicos e melódicos (em especial o uso dos modos gregos), figuras rítmicas repetitivas (ostinatos), compassos curtos, ornamentos (glissandos, apogiaturas e arpejos), cromatismos, dissonâncias, cantos sem letra, uso de instrumentos orientais, entre outras (SCOTT, 1998, p. 327).

No caso específico de “Turandot”, Puccini usou alguns desses recursos e também uma música tradicional chinesa provavelmente tirada de uma caixinha de música, um artigo popular da época. Em vários momentos da ópera, é possível identificar a melodia “Mò-lì-huā” (茉莉花), ou “Flor de Jasmim”, especialmente nas entradas de Turandot ao palco. Tanto os trechos inspirados em “Mò-lì-huā” quanto outros compostos dentro da estética oriental são usados para os personagens chineses, enquanto as melodias cantadas pelos personagens estrangeiros (Timur e Calaf) estão dentro da estética ocidental. A única exceção é Liù, que quase sempre canta em escala pentatônica, como na ária “Signore, ascolta” (“Senhor, escute-me”). Essa diferença reforça metaforicamente o exotismo dos chineses e a civilidade de Calaf, já que na época se considerava a música oriental como pouco complexa em comparação com a música erudita ocidental, vista como mais elaborada (SCHWARTZ, 2009, p. 41).

Os motivos musicais orientais são utilizados de modo a soarem dissonantes e repetitivos, como na cena em que Turandot canta “In questa reggia” (“Neste palácio”). Por outro lado, nos momentos em que Calaf vence Turandot, quando o oriental é subjugado pelo estrangeiro, as melodias são triunfantes e grandiosas. Um exemplo é a cena em que Calaf decifra o terceiro enigma e porta-se como um herói, o coro o ovaciona e Turandot afunda em angústia e desesperança:

 

Gloria!

Gloria, o vincitore!

Ti sorride la vita!

Ti sorride l'amore! (PUCCINI, 1926, p. 55)

 

[Glória!

Glória, o vencedor!

A vida te sorri!

O amor te sorri!]

“Turandot”, colonialismo e o fascismo italiano

A Itália é herdeira de uma cultura operística bastante tradicional dentre os países europeus. Sendo parte dessa tradição, “Turandot” é um produto cultural que expressa a visão europeia sobre a China numa época em que o imperialismo era (e ainda é) componente essencial para entender as relações entre o Ocidente e as outras regiões do globo. Considera-se que “Turandot” seja a última das “grandes óperas italianas”, que estavam aos poucos sendo substituídas por outras formas de fazer música. Entretanto, com a ascensão de Mussolini no início da década de 1920, houve grande apoio financeiro do governo para apresentações operísticas, de modo que o gênero teve um papel essencial para assegurar o apoio popular ao regime fascista. Essa proximidade entre fascismo e ópera pode ser associada ao próprio Duce, carismático e com gestos exagerados, como um “astro” da ópera (SCHWARTZ, 2009, p. 31).

Puccini não está fora desse contexto. É sabido que o compositor não era abertamente apoiador do regime, ainda que nutrisse certa simpatia (SCHWARTZ, 2009, p. 33). Isso não impediu a apropriação de sua imagem e trabalho pelos fascistas após sua morte: por exemplo, o “Inno a Roma”, composição de Puccini, era tocado em manifestações públicas em apoio ao fascismo.

No que diz respeito a “Turandot”, apesar da história em si remontar há séculos atrás, a ópera pode ser entendida como uma alegoria que empresta elementos fascistas para contar a história da ascensão de Mussolini como se fosse uma “jornada do herói”: o ambiente onde se desenrola a trama é a decadente capital, que já viu dias melhores; há o imperador que detém autoridade simbólica, mas pouco poder efetivo; há os ministros de governo intelectuais, corruptos e saudosos de um passado idealizado; há as massas populares empobrecidas, violentas e facilmente influenciáveis; e o salvador que, com o apoio do imperador e da população, traz paz ao reino (SCHWARTZ, 2009, p. 32).

Outra interpretação da relação entre “Turandot” e o imaginário imperialista é explorada por Gaoheng Zhang. O autor destaca o projeto colonialista italiano, cujas raízes se encontram mesmo antes do fascismo. Logo após a unificação de 1861, entendia-se que havia uma necessidade de mostrar às potências europeias que a Itália era uma nação moderna, uniforme e fortalecida, para combater a ideia de que a península era fragmentada e impotente. Nesse sentido, para inserir a Itália na corrida imperialista, foram levadas a cabo campanhas na Eritreia (1890), Etiópia (1895–1896) e a guerra contra o Império Otomano (1911–1912), que garantiu a posse de terras na Grécia e Líbia. Já sob o fascismo, os italianos ocuparam a Etiópia em 1936 e a Albânia em 1939 (ZHANG, 2012, p. 400).

Para além das campanhas militares, o governo italiano, antes e durante o fascismo, encampou um discurso político que relacionava modernidade e herança do Império Romano, colonialismo, nacionalismo e virilidade. No caso da Guerra Ítalo-Turca, contra os otomanos, o soldado italiano que lutava nas guerras imperialistas era exaltado como um modelo de figura masculina patriota, que enfrentava o inimigo infiel, corrupto, e oriental.

Essa lógica, quando inserida em “Turandot”, revela mais uma vez os paralelos imperialistas presentes na ópera: Calaf é visto como o italiano colonizador ideal, que chega às terras estrangeiras para impor seu domínio, enquanto sobre a princesa são reproduzidos os mesmos estereótipos orientalistas impostos aos turcos. A vitória do Príncipe Desconhecido sobre Turandot, então, pode ser entendida como uma dramatização da conquista italiana das terras dos otomanos (ZHANG, 2012, p. 410). Aliás, quando Calaf rejeita as tentações dos ministros (mulheres e riquezas), ele representa o triunfo da masculinidade e honra italiana contra a degeneração moral do Oriente.

Outro ponto, relacionado aos papéis de gênero, pode ser apontado no contraste entre Turandot e a escrava Liù. A princesa é orgulhosa, histérica, autoritária, típica femme fatale, e representa a mulher “moderna”, que enfrenta o homem e recusa cumprir com sua função progenitora. Por outro lado, Liù é doce, amável e submissa, e encarna o papel da mulher italiana “tradicional”, disposta a fazer tudo por seu grande amor (ZHANG, 2012, p. 413). Na ária “Nessun Dorma” (“Que ninguém durma”) — que tornou-se famosa pelas interpretações de cantores líricos, como Luciano Pavarotti e Andrea Bocelli, e mesmo de cantores pop, como Aretha Franklin e Freddie Mercury —, percebemos a reafirmação do padrão tradicional de feminilidade no qual está manifesta a sujeição da mulher pelo homem. Nos momentos finais da ópera, a melodia da ária é retomada, mostrando que Turandot está transformada e que aceita o casamento com Calaf.

 

Considerações finais

Nas artes visuais do século XIX, pintores europeus como Delacroix, Ingres e Gérôme recorreram a fenótipos, roupas, estilos de cabelo e paisagens para localizar suas pinturas que retratavam o Oriente. Contudo, raramente chegaram a usar técnicas de pintura oriundas do próprio Oriente para fazer seus trabalhos parecerem mais “legítimos”. Ralph Locke afirma que coisa semelhante ocorreu com a música ocidental: nas composições que fazem alguma referência ao Oriente, há a intenção de expressar exotismo, embora a música oriental em si esteja à margem de sua própria representação (LOCKE, 1993, p. 11).

Quando, sob essa ótica, analisamos “Turandot” (e o gênero operístico de modo geral), deve-se levar em conta que a ópera, como parte da chamada “alta cultura”, é tradicionalmente conservadora, e não vanguardista. Ela tem a função de tornar uma realidade dissonante e estranha numa experiência artística agradável ao público, atendendo aos padrões estéticos relativos a seu contexto. “Turandot” categoriza, classifica, hierarquiza e torna inteligível e controlável o Outro asiático, transformando-o nos estereótipos orientalistas (LIAO, 1990, p. 34).

Resgatando as ideias gerais de Edward Said e de outros críticos, entendemos que produções artísticas orientalistas, reproduzindo relações de dominação entre Ocidente e Oriente, possuem maior proximidade com a cultura que as rodeia e com o público que as consome do que com o Oriente “real”. “Turandot”, sendo uma ópera ocidental composta para ocidentais, está inserida nessa dinâmica e, portanto, é repositório de visões, imagens e ideias que circulavam num momento de afirmação da superioridade do homem sobre a mulher, do europeu sobre o oriental, do italiano sobre o otomano.

 

Referências

Bruno Stori é graduando em História — Licenciatura com Bacharelado na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

 

CORSE, Sandra. “Mi chiamano Mimì”: the role of women in Puccini's operas. The Opera Quarterly, Oxford, v. 1, p. 93–106, 1983.

LIAO, Ping-Hui. "Of writing words for music which is already made": "Madama Butterfly, Turandot", and orientalism. Cultural Critique, Minneapolis, n. 16, p. 31–59, 1990.

LOCKE, Ralph P. Reflections on Orientalism in Opera (and musical theater). Revista de Musicología, Madrid, v. 16, n. 6, p. 10–22, 1993.

PUCCINI, Giacomo. Turandot. Itália, 1926. Libreto de Giuseppe Adami e Renato Simoni, 86 p. Disponível em:

<https://imslp.org/wiki/Turandot%2C_SC_91_(Puccini%2C_Giacomo)>.

[versão traduzida para o português disponível em:

<http://opera.stanford.edu/Puccini/Turandot/ato1.html>]. Acesso em: 21 ago. 2020.

SCOTT, Derek B. Orientalism and Musical Style. The Musical Quarterly, Oxford, v. 82, n. 2, p. 309–335, 1998.

SCHWARTZ, Arman. Mechanism and tradition in Puccini’s Turandot. The Opera Quarterly, Oxford, v. 25, p. 28–50, 2009.

YU, Hong. The ambiguity in Turandot: an orientalist perspective. English Language and Literature Studies, Toronto, v. 8, n. 1, p. 114–119, 2018;

ZHANG, Gaoheng. The three riddles in Puccini’s Turandot: masculinity, empire, and orientalism. In: HINDINGER, Barbara; SALETTA, Ester (orgs.). Der musikalisch modellierte Mann: Interkulturelle und interdisziplinäre Männlichkeit Studien zur Oper und Literatur des 19 und frühen 20 Jahrhunderts. Praesens, 2012. p. 398–417.

7 comentários:

  1. Como apreciadora de ópera, sendo Turandot uma das minhas favoritas, foi uma grata surpresa encontrar um artigo como este aqui!

    Falando sobre as montagens modernas, em que existe justamente a tentativa de trazer propostas vanguardistas para compor o cenário, gostaria de saber o que comunicador pensa a respeito delas: É possível atualizar visualmente uma obra a ponto dela lidar com questões atuais e se desvencilhar do orientalismo original?

    Por fim, através da análise dos autores citados, observa-se que a última obra de Puccini fornece mais elementos para a compreensão do contexto e das visões de quem escreveu a ópera - no caso, os italianos - do que sobre o povo retratado nela. Diante disso, pergunto: sendo possível, o que podemos aprender sobre a China em Turandot mais do que a visão que se tinha sobre ela quando foi composta?

    Grata desde já.

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    1. Olá Ana Paula! Obrigado pelos comentários.

      Sobre a primeira questão, o esforço em "atualizar" Turandot já resultou em algumas montagens bem interessantes. Por exemplo, uma delas (que não achei o link) tem um cenário e figurino futuristas, fugindo bastante da atmosfera da "China Antiga" e trazendo outras questões para além do que foi proposto por Puccini. Os chineses também já fizeram várias adaptações e releituras da ópera, a maioria ao estilo da ópera de Pequim (que é um gênero diferente da ópera europeia), alterando a história e outras coisas. Acontece que a ópera é mais do que o visual, e o orientalismo permeia vários aspectos de Turandot, desde a primeira tradução do século XVIII até a música, trama, construção das personagens, etc. Acho muito difícil se afastar completamente do orientalismo sem descaracterizar completamente a obra, mas algumas apresentações atuais têm feito trabalhos interessantes nesse sentido.

      Sobre a segunda questão, acho que isso toca num debate maior que é o orientalismo como uma construção discursiva que não necessariamente está dissociada da realidade. Ou seja, o orientalismo não é sempre um discurso ficcional, e pode ter alguma relação com o "concreto" (apesar disso não torná-lo menos problemático). Enfim, é mais uma relação de poder do que apenas disputa de narrativas.
      No caso da representação da China em Turandot, um ponto que acho interessante destacar é a resistência dos chineses à presença estrangeira, que é uma característica que data de séculos antes do imperialismo do século XIX. Esse "irredentismo" da China é muito bem simbolizado pela própria Turandot, que resiste em se casar.
      Também vemos a aversão dos chineses aos estrangeiros nos diálogos entre a princesa e Calaf, que é tártaro. Em várias situações, Turandot o chama de "estrangeiro" de forma pejorativa, e é possível fazer uma ligação disso com a relação entre a China e outros povos asiáticos, considerados inferiores pelos chineses. Essas questões estão presentes na ópera, demonstrando que os europeus tinham algum conhecimento da visão da China sobre o resto do mundo.

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  3. Prezado Bruno. Inicialmente, gostaria de te parabenizar pelo texto, extremamente bem escrito, claro e cativante. O assunto é interessantíssimo e tua análise clara e crítica. Achei especialmente interessante a relação que tu fazes entre a estética orientalista e o fascismo italiano, mostrando que esse imaginário orientalista é sempre readaptado e reutilizado para propósitos do presente.
    Pegando um gancho na pergunta anterior, como tu acreditas que essa obra é recebida e readaptada na China? Se busca criticar e descartar os elementos orientalistas ou essa narrativa também serve a um imaginário próprio auto-exotificante?
    Naiara Assunção

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    1. Olá Naiara! Obrigado pelos comentários.

      Então, por um bom período de tempo a China não recebeu muito bem Turandot. Dizia-se que o Partido Comunista havia proibido apresentações da ópera após 1949, mas nunca houve registro disso. Os próprios chineses evitavam a obra, pelo orientalismo e também pelo fato de poucas óperas ocidentais entrarem nos repertórios das orquestras chinesas. Isso só se intensificou com a Revolução Cultural, quando as raras companhias de ópera ocidental na China perderam o pouco espaço que tinham.
      A situação começou a mudar a partir da década de 1990, quando surgiu um interesse em reproduzir Turandot por parte de algumas companhias de ópera. Apesar de um certo receio do governo, houve apresentações em Pequim e em Shanghai, sem alterações do conteúdo. Ao mesmo tempo, alguns compositores (como Wei Minglun) fizeram algumas adaptações para o estilo da ópera de Pequim, e outros como Xu Xiaozhong deslocaram a trama para a Ásia Central para fugir da visão estereotipada dos chineses.

      Uma apresentação em específico que gostaria de destacar é a de 1998, realizada na Cidade Proibida de Pequim e dirigida por Zhang Yimou (que também é diretor de alguns filmes chineses famosos). O efeito de realizar a ópera em seu "real espaço", onde a história teria acontecido (o palácio em Pequim) teve grande efeito, e a apresentação teve grande repercussão nacional e internacionalmente. Foi uma superprodução que envolveu milhares de pessoas, e não houve alteração da trama, embora Yimou tenha trazido outros elementos para tornar a ópera mais “chinesa” por meio do cenário, figurino, coreografia, estética.
      O link para essa versão é esse:

      Um outro exemplo é a versão de Hao Weiya, de 2008. Weiya foi contratado para escrever um novo final para a história (o que já era pensado por muitos compositores chineses), e estudou os rascunhos de Puccini, para não usar o final de Franco Alfano. A recepção interna do trabalho foi ótima, mas foi mista no exterior.

      Para resumir, não há uma recepção uniforme dos chineses, e desde os anos 1990 Turandot tem sido mais bem recebida no meio cultural de lá. Continuam surgindo algumas adaptações para a ópera de Pequim (e aí as mudanças são tanto na trama quanto na música), mas, apesar dos chineses terem consciência das problemáticas da obra, também são feitas apresentações do conteúdo original, com orientalismo e tudo.

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    2. Faltou o link da versão de 1998: https://www.youtube.com/watch?v=dyZHi-yVESQ&t=1935s&ab_channel=nasserelaghil

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