Naiara Assunção

 

“ORIENTALISMO”: O CONCEITO DE EDWARD SAID E SUAS CRÍTICAS

 

O presente texto tem como objetivo discutir o conceito de “orientalismo”, desenvolvido por Edward Said em 1978, e algumas de suas posteriores críticas. O objetivo é destrinchar a definição dada por Said e apresentar alternativas de utilização deste conceito para a análise de fontes históricas em pesquisas atuais. Para isso, serão consideradas e avaliadas as críticas de Robert Irwin em Pelo amor ao saber [2006], de Aijaz Ahmad em Orientalismo e depois: ambivalência e posição metropolitana na obra de Edward Said [1992] e de Reina Lewis em Rethinking Orientalism: Women, Travel and the Ottoman Harem [2004]. Por fim, será apresentada, como alternativa de uso crítico deste conceito, a perspectiva crítica feminista, interseccional e decolonial.

Iniciemos, portanto, analisando a obra Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente, trabalho mais impactante de Edward Said, influente crítico literário e militante da causa palestina. Publicado em 1978, esta obra caracteriza “Orientalismo” como um discurso que serviu de instrumento aos europeus para “manejar – e até mesmo produzir – o Oriente política, sociológica, militar, ideológica, científica e imaginativamente durante o período do pós-Iluminismo” [Said, 2013, p. 29].  A ideia padrão de “Oriente” no imaginário ocidental seria, portanto, “praticamente uma invenção europeia” [Said, 2013, p. 27], elaborada a partir da constituição de imagens que se articulavam com as políticas imperialistas produzidas no contexto da expansão colonialista dos séculos XVIII e XIX e nas teorias racistas vigentes no mesmo período. Tais representações ecoam até os dias de hoje, através do universo midiático e cinematográfico em suas posturas xenofóbicas, anti-islâmicas e nos modelos de representação de árabes que os associam, unicamente, ao fundamentalismo religioso e ao terrorismo.

Said diferencia três categorias de Orientalismo. Primeiro, o “orientalismo acadêmico”, que designaria as disciplinas e as pessoas que ensinam, escrevem ou pesquisam sobre o oriente (antropólogos, filólogos, sociólogos, historiadores, etc). Hoje em dia, no meio acadêmico, o termo contraiu uma conotação negativa justamente devido à obra de Said, que associa esses estudos ao empreendimento colonial europeu do século XIX. Em segundo lugar, Said diferencia o “orientalismo imaginativo”, representativo de um estilo artístico e literário, baseado em uma “distinção ontológica e epistemológica” [Said, 2013, p. 29] entre Oriente e Ocidente, inspirando o trabalho de poetas, romancistas, filósofos, teóricos políticos, economistas, administradores, e servindo como inspiração e pano de fundo para epopeias, romances, pinturas, retratos, etc. Em terceiro lugar, define o “orientalismo histórico e material” caracterizado como “um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente” [Said, 2013, p. 29]. Tal noção derivaria, mais especificamente, de um empreendimento cultural e político, britânico e francês, levado a cabo durante o século XIX e início do XX, sendo resultado de relações de poder determinadas pela expansão colonial europeia, conformando discursos com o objetivo de subjugar os povos dos territórios conquistados.

Desta forma, o estabelecimento de um imaginário ocidental sobre o Oriente se dá em um contexto histórico específico, com objetivos específicos, e é responsável por generalizações e consolidação de estereótipos tais como a caracterização do Oriente como um espaço exótico, pitoresco, misterioso, selvagem, aberto aos desejos luxuriosos dos europeus, a qualificação dos orientais como indolentes, bárbaros e lascivos e as mulheres como sensuais, vulgares e disponíveis sexualmente ao homem europeu.

Esta obra, como dito anteriormente, teve grande repercussão entre acadêmicos, intelectuais e no mundo político. Pode-se dizer que ela inaugurou a área de estudos pós-coloniais anglo-saxões, definida por Grosfoguel e Castro-Gómez como representante da “crítica ao desenvolvimentismo, formas eurocêntricas de conhecimento, desigualdade entre os gêneros, hierarquias raciais e processos culturais/ideológicos que favorecem a subordinação da periferia no sistema-mundo capitalista” [Castro-Gómez e Grosfoguel, 2007, p. 14], trazendo, assim, novos problemas de pesquisa, relacionando as formas de poder das potências europeias com os discursos por elas consolidados. Foi alvo também de diversas críticas, provenientes de diferentes grupos e algumas delas serão analisadas aqui.

A primeira crítica abordada será a de Robert Irwin, historiador e romancista britânico, que em seu livro, Pelo amor ao saber [2006], busca evidenciar a “verdadeira história do orientalismo (ou no mínimo uma história mais verdadeira)” [Irwin, 2006, p. 12], através da descrição cronológica de estudos realizados por orientalistas desde a Grécia antiga, passando pelo Renascimento, Iluminismo, até o século XX. O objetivo do autor é demonstrar que Said haveria generalizado demais sua noção de “orientalismo”, não levando em consideração uma tradição intelectual muito mais ampla e profunda. Irwin classifica como “orientalista” aqueles homens (grifo meu) que dedicaram suas vidas a trabalhos maçantes e escrupulosos pelo “amor ao saber” e a real curiosidade em relação ao mundo oriental, e não como compositores e cúmplices do discurso imperialista, como defendido por Said.

Para Irwin o campo do “orientalismo” refere-se, sobretudo, aos estudos acadêmicos (majoritariamente masculinos). Desta maneira, este autor desconsidera tanto a contribuição feminina para o discurso orientalista como os trabalhos artísticos que Said, relacionou ao “orientalismo imaginativo”. Desta forma, o autor nega o que pode ser considerado um dos aspectos mais abrangentes do “orientalismo” e que tiveram mais alcance e influência no imaginário ocidental: as pinturas de Delacroix e Ingres, as adaptações de As Mil e Uma Noites e as obras literárias como de Flaubert e Verdi, além das obras produzidas por mulheres colonizadoras, excluídas do mundo acadêmico por serem mulheres.

O tom do livro, a meu ver, é de um intelectual apaixonado por seu objeto de estudo, contrariado ao ser relacionado com jogos políticos de dominação e resistência e ao imperialismo das potências ocidentais. Louvando a erudição conquistada a partir da dedicação exclusiva e análises minuciosas e maçantes, idealizando o trabalho intelectual como isento e acima das relações de poder mundanas, Irwin considera que “Orientalismo não é uma história dos estudos orientais, mas uma polêmica altamente seletiva sobre certos aspectos da relação entre o conhecimento e o poder” [Irwin, 2006, p. 328], não tendo qualquer relevância para a compreensão deste campo acadêmico. Como pesquisadora do mundo oriental, discordo veementemente da análise de Irwin, porém, creio ser importante abordar sua perspectiva a fim de abarcar as diferentes perspectivas existentes sobre a obra de Said.

Ainda neste debate, trago a contribuição, que acredito ser mais relevante, de Aijaz Ahmad, intelectual marxista indiano. Seu texto, Orientalismo e depois: ambivalência e posição metropolitana na obra de Edward Said, publicado inicialmente em 1992, tece uma crítica marxista à obra aqui em discussão. Guiado pelo viés teórico materialista, Ahmad discorda de Said quando este argumenta de que o imperialismo moderno seria efeito não de causas materiais e sim, unicamente, de práticas do discurso, colocando a primazia da representação sobre todas as atividades humanas. Ahmad, por outro lado, vê o colonialismo como resultado do desenvolvimento do capitalismo europeu. Neste sentido, acredito ser pertinente a crítica decolonial, que será melhor desenvolvida adiante, que questiona a necessidade de se estabelecer uma “primazia” de economia sobre cultura ou vice-versa.

Ahmad também argumenta que Said, ao acusar o ocidente de não permitir que o oriente represente a si mesmo, no fim comete o mesmo erro. Segundo o indiano, autor de Orientalismo utiliza como fontes de análise apenas o cânone ocidental para sua argumentação, ignorando a produção intelectual dos países colonizados ou da tradição metropolitana de esquerda. O argumento de Said, por conta de sua formação em crítica literária, é construído apenas sobre o legado do humanismo masculino europeu e acaba mantendo uma posição ambígua, condenando a literatura ocidental, porém demonstrando grande admiração por esta tradição.

Outros problemas apontados são sobre os essencialismos presentes em Orientalismo, que, segundo Ahmad, promove generalizações que acabam por descartar “civilizações inteiras como formações enfermas” [Ahmad, 2002, p. 143], mesmo procedimento adotado pelo colonialismo. Neste ponto discorda de Said quando este, invocando a noção de discurso de Foucault, afirma que os europeus eram/são ontologicamente incapazes de produzir qualquer pensamento verdadeiro sobre a não-Europa, descartando o pensamento crítico da esquerda europeia.

Ahmad prossegue a crítica ao que chama “pós-modernidade”, definindo o pós-colonialismo como uma teoria burguesa, desenvolvida pelas elites intelectuais masculinas de países colonizados que tiveram condições de migrar para as universidades metropolitanas. Estes indivíduos não seriam representativos das classes mais baixas nas colônias e, muitas vezes, oriundos de famílias cúmplices e beneficiárias do colonialismo acabaram por descartar o marxismo por abordar a questão de classe, desconfortável a eles. Acredito ser essa uma crítica muito mais relevante que a de Irwin por colocar em questão recortes de classe e gênero ignorados tanto pelo americano quanto por Said. Tal aspecto será desenvolvido melhor por autoras feministas e analisada mais extensamente adiante.

De forma geral, acredito que Ahmad tocou em pontos muito pertinentes, sobretudo no questionamento à posição de teóricos pós-coloniais que, muitas vezes, acabam não avaliando seu próprio pertencimento a uma elite, em sua maior parte, masculina, das áreas colonizadas, o que lhes proporciona certos privilégios dentro do sistema colonial. De especial relevância é a crítica às fontes utilizadas para as análises, que privilegiam, também, a produção apenas de homens ocidentais de elite, ignorando as várias obras que foram publicadas por mulheres ocidentais e orientais sem, no mínimo, questionar a não disponibilidade de fontes produzidas por grupos socialmente excluídos no contexto colonial.  Também considero interessantes as ponderações sobre alternativas de produção de conhecimento relevante por parte das metrópoles.

Partindo então para uma crítica de viés feminista e pós-colonial, trago a análise da historiadora britânica, Reina Lewis, em Rethinking Orientalism: Women, Travel and the Ottoman Harem [2004]. Tal obra não consiste em uma crítica direta e especifica à obra de Edward Said mas propõe repensar o conceito de “orientalismo”, por ele cunhado, considerando as “respostas, adaptações e contestações daqueles [sobretudo, daquelas] que se constituíram como seus objetos” [Lewis, 2004, p. 2]. Ao pensar nas reações e intervenções de mulheres escritoras otomanas ao discurso imperialista, Lewis busca dar conta de algumas das críticas direcionadas a Said: a de apenas utilizar o cânone Ocidental como parâmetro de suas análises, sem considerar as relações de gênero implicadas nos discursos que examina e tomando os orientais como sujeitos passivos no processo de colonização.

Sua proposta de “repensar o orientalismo”, portanto, leva em consideração as críticas até aqui apontadas, sobretudo quando se referem ao espaço privilegiado dos autores homens nas análises e que ignoram a relativamente grande quantidade de material produzido por mulheres, no mesmo contexto. Não se trata, portanto, de descartar a noção de “orientalismo” como categoria de análise, mas sim considerá-la a partir das discussões posteriores à obra de Said, a fim de melhor analisar as realidades coloniais considerando recortes de gênero e de classe juntamente com os discursos de etnicidade e raça inicialmente explorados.

Nesse sentido, há uma grande contribuição da crítica decolonial, desenvolvida por um grupo de pesquisadoras e pesquisadores latino-americanos, como uma alternativa às perspectivas pós-coloniais e materialistas. Por um lado, esta perspectiva busca “transcender” a linearidade cronológica eurocentrada que o termo “pós-colonial” postula com ideia de que a situação colonial teria sido superada por uma pós-colonialidade. Também critica a primazia do “discurso colonial”, na agência cultural dos sujeitos e as análises puramente semióticas desse campo teórico. Por outro lado, a decolonialidade também trata de quebrar com as hierarquias de “estrutura” e “superestrutura” da análise marxista, postulando que os âmbitos discursivos e simbólicos não são unilateralmente determinados nem determinantes do âmbito econômico e sim todos estes estão articulados em uma rede de relações múltiplas.

Desta forma, a partir de uma perspectiva decolonial, se busca evitar os “desastres” tanto do reducionismo econômico quando do reducionismo culturalista ao perceber que a cultura está sempre entrelaçada e não derivada, dos processos econômicos e políticos. Ao se tratar do colonialismo, este entrelaçamento é significativo quando se analisa a maneira como os discursos raciais organizam a população do mundo em uma divisão internacional do trabalho que tem implicações econômicas diretas.

Aqui, creio ser importante destacar que pensar as intersecções entre gênero, raça e classe não significa meramente o estudo da mulher, indígena e pobre, como se costuma relacionar. Esta associação se dá pelo fato de tratarmos o homem, branco, de classe média/alta como sujeito universal e não pensarmos que estas também são categorias válidas de análise para branquitudes, elites e masculinidades. Assim, pensar sobre questões de gene significa analisar as relações de poder que derivam dos diferentes papéis sociais atribuídos a homens e mulheres e de que forma as diferentes concepções de masculino e feminino interagem entre si em diferentes momentos históricos. Além disso, a conceituação de gênero, dada por Joan Scott nos leva também a analisar as relações políticas a partir deste viés, pois, como a autora coloca, “O gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o poder político foi concebido, legitimado e criticado” [Scott, 1989, p. 27]. Scott argumenta que a legitimação de governos ou sistemas de dominação também se dá no domínio do gênero, sempre associando a autoridade central e o poder soberano a características masculinas e à virilidade enquanto inimigos, subversivos e estrangeiros normalmente são caracterizados com atributos tidos como femininos tais como fraqueza, fragilidade, indolência e falta de virtude.

Encerro este texto com a expectativa de ter elucidado caminhos teóricos possíveis para análise de fontes históricas a partir da utilização crítica do conceito de “orientalismo”. Acredito que uma abordagem interseccional, que busque dar conta de avaliar as relações de poder que emanam das categorias “gênero”, “raça” e “classe” nos auxilia a pensar as relações entre o material e o cultural de maneira entrelaçada em contextos coloniais ou pós-coloniais. Também nos auxiliam a usar criticamente a categoria de “oriente” ao estudar “história oriental” tendo em vista a complicada historicidade da divisão do mundo entre “Oriente” e “Ocidente”.

 

Referências

Originalmente, este texto compôs parte da dissertação de mestrado “Entre Ghawazee, Awalim e Khawals: viajantes inglesas da Era Vitoriana e a “Dança do Ventre””, publicada em 2018 polo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGH-UFRGS) e foi aqui editado e adaptado para os propósitos do 4º Simpósio Eletrônico Internacional de História Oriental (2020).

 

Sobre a autora:

Naiara Müssnich Rotta Gomes de Assunção é Bacharel (2014) e Mestra (2018) em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestra em Antropologia da Dança pelo programa Choreomundus (Mestrado Internacional em Conhecimento, Prática e Patrimônio Cultural da Dança), oferecido por consórcio entre a Universidade de Clermont Auvergne (UCA, coordenadora) em Clermont-Ferrand, na França; Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia (NTNU), em Trondheim, Noruega; Universidade de Szeged (SZTE), Hungria; Universidade de Roehampton (UR), em Londres, Reino Unido, com financiamento Erasmus Mundus Joint Masters Degree. Realiza investigação sobre dança do ventre/dança oriental por um viés histórico (através de relatos de viagem de inglesas e ingleses que foram ao Egito no século XIX) e antropológico (através de trabalho de campo realizado no Cairo sobre o mercado de dança do ventre egípcio). Coordena o Coletivo Hunna: Historiadoras que Dançam.

 

AHMAD, Aijaz. Orientalismo e depois: ambivalência e posição metropolitana na obra de Edward Said. In: AHMAD, Aijaz. Linhagens do presente: Ensaios. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002. p. 109-166.

ASSUNÇÃO, Naiara Müssnich Rotta Gomes de. Entre Ghawazee, Awalim e Khawals: viajantes inglesas da Era Vitoriana e a “Dança do Ventre”. 2018.  194 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/182762. Acesso em: 12 jun. 2020.

CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. Prólogo. Giro decolonial, teoría crítica y pensamiento heterárquico. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (Ed.). El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007.

IRWIN, Robert. Pelo amor ao saber: Os orientalistas e seus inimigos. Rio de Janeiro: Record, 2008.

LEWIS, Reina. Rethinking Orientalism: Women, Travel and the Ottoman Harem. New Brunswick, New Jersey: Rutgers University Press, 2004.

SAID, Edward. Orientalismo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2013.

SCOTT, Joan Wallach. Gender: a useful category of historical analyses. In: Gender And The Politics Of History, New York: Columbia University Press, 1989, p.28-50. Tradução "Gênero: uma categoria útil para análise histórica" por Christine Rufino Dabat e Maria Betânia Ávila. Disponível em:

<http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/185058/ mod_resource/content/2/Gênero-Joan Scott.pdf>. Acesso em: 15 set. 2015.

10 comentários:

  1. Bom dia. Gostei do seu texto, pois ele nos convoca a repensar o conceito de orientalismo procurando as afinidades possíveis e as ressignificações sem recair em uma discurso simplista que simplesmente renega as contribuições importantes do Said e, mais do que isso, um discurso que cristaliza uma imagem do seu trabalho ao que escreveu em 1978, e, com isso, esquece que ele faleceu em 2003 e repensou seu próprio trabalho anterior. Dito isso, faço a seguinte pergunta-reflexão: considera que existe a tendência, em alguns escritos decoloniais, a simplificar as contribuições de pensadores importantes sem entender exatamente as rupturas que estabeleceram com certos pensamentos anteriores, os novos conceitos que propuseram, os quais atualmente auxiliam o nosso próprio pensamento?
    Leandro Mendanha e Silva

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    1. Olá, Leandro! Muito obrigada pelo teu comentário e questão que acredito ser super pertinente e necessária de ser discutida. O que tu observaste em relação a simplificar e descartar a contribuição de autores que podemos considerar hegemônicos no meio acadêmico vem, a meu ver, de um esvaziamento do conceito de “decolonialidade”. O termo entrou na moda sem ser devidamente discutido a partir das ideias do grupo latino/latinoamericano “modernidad/colonialidad” de autores que pensaram o “giro decolonial”. Esse esvaziamento também vem da falta de compreensão da diferença entre colonialismo e colonialidade e da falta de profundidade na compreensão de em quem esses autores se aportam e influenciam teoricamente. A decolonialidade não descarta a contribuição de autores marxistas e pós-coloniais, por exemplo, mas constrói o pensamento a partir deles, claro, através de crítica, reelaboração e novas proposições. Não quer dizer que não vamos mais ler Foucault e Bourdieu, mas vamos ler considerando a crítica de Achille Mbembe e Chandra Mohanty, questionando porque apenas os primeiros são considerado cânones, levando em consideração a problemática de poder que eles mesmos ajudaram a considerar.
      Naiara Assunção

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    2. Obrigado pela resposta, Naiara. Estou totalmente de acordo.
      Leandro Mendanha e Silva

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  2. Boa tarde Naiara, parabéns pelo texto. É interessante como você mostrou o "Orientalismo" do Said não como uma ruptura imediata e definitiva com o cânone ocidental, mas como uma introdução a um debate que ainda está em construção, onde estão intelectuais como Ahmad, Lewis e os autores decoloniais. Tendo em vista estes intelectuais citados no texto (e outros que você pode ter entrado em contato), você acha que as críticas de tais autores têm tido algum impacto nos estudos aqui do Brasil que envolvem o "Oriente" e o orientalismo, ou ainda predomina a primeira definição de Said (que embora seja bastante importante, já foi reinterpretada e criticada)?

    Bruno Stori

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    1. Querido Bruno. Muito obrigada pela questão. Creio que tenho propriedade para falar apenas da minha área, que são os estudos sobre dança do ventre. Entre praticantes dessa modalidade no Brasil nem o conceito do Said é amplamente entendido, principalmente porque lidamos com um público não acadêmico. As pesquisas acadêmicas na área ainda são poucas e, quando vindas de áreas que não das ciências humanas como dança, educação física e performance, raramente Said é citado, tanto por desconhecimento quanto por não ser a análise histórica e contextual o foco das pesquisas. Portanto, quando citado, ainda se aborda o conceito de orientalismo por si só, sem considerar as críticas posteriores. Estou agradecida pela oportunidade aqui do simpósio de entrar em contato com pesquisas em outros campos da história oriental e agregar ao meu repertório outros autores e autoras que estão elaborando e repensando a questão do orientalismo a partir de críticas e questões mais atuais. Creio que temos um grande campo ainda a desbravar e o debate, nesse sentido, é fundamental.
      Naiara Assunção

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  3. Naiara, seu texto é bem reflexivo, claro e, inclusive, didático na forma de explicar. Parabéns!
    Nas referências, você comentou acerca de sua dissertação de mestrado. Logo, percebe-se que se aprofundou no temário dança do ventre e meus pedidos vêm nesse sentido.
    Qual a história/origens da dança do ventre em uma perspectiva que dá voz ao oriente?
    Quando começaram e quais são as visões orientalistas da dança do ventre?
    Grata,
    Vanessa Bivar

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    1. Querida Vanessa. Tua questão é extremamente abrangente e difícil de ser respondida resumidamente, já que esse vem sendo meu tema de pesquisa desde 2014. Creio ser impossível descrever a história de qualquer coisa em um pequeno comentário, mas posso te dar uma pequena ideia do como começar a entender a questão e fornecer algumas indicações de leitura. A “dança do ventre” como modalidade de dança transnacional tem sua história diretamente atrelada ao processo colonial e ao imaginário orientalista europeu. Ela foi se desenvolvendo ao longo do tempo a partir da circularidade de culturas entre Norte da África, Oriente Médio e Europa, possuindo influências inclusive de culturas que extrapolam essas regiões. A partir de práticas de danças de grupos como as ghawazee, awalim e khawals no Egito a dança passou a se desenvolver no país a partir da interação com colonizadores europeus e se transnacionalizou agregando elementos provindos de diversas regiões do mundo. Se queres te aprofundar na questão, recomendo seguires o Coletivo Hunna no Instagram (@hunna.coletivo). Lá compartilhamos vários textos introdutórios sobre a questão e disponibilizamos um drive de textos acadêmicos, caso tenhas interesse em te aprofundar no assunto. Como minha dissertação de mestrado está em português e é de acesso livre, também já deixo o link aqui, caso queiras ler mais sobre o assunto: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/182762
      Naiara Assunção

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  4. Oi, Naiara, achei seu texto muito interessante.

    Me chamou atenção a negação de Irwing sobre os aspectos "imaginativos", pois minha aproximação com o mundo oriental vem justamente daí, pelo campo da indumentária.

    Tenho duas perguntas:
    1) Na sua pesquisa sobre a dança imagino que em algum momento surgiu a relação do figurino e o imaginário em torno da "odalisca". Você poderia comentar um pouco o que obteve nesse sentido?

    2) Você menciona que a perspectiva decolonial busca transcender a linearidade cronológica eurocentrada. Você já conseguiu identificar alguma alternativa à essa forma de datação?

    Obrigada!
    Natália Santucci

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    1. Olá Natália! Muito obrigada pelas tuas questões extremamente bem colocadas e pertinentes.
      1) Em relação à primeira, sim, existe uma relação mas entendo ela como paralela. A dança do ventre, tanto em sua técnica quanto em sua estética, se desenvolveu em diálogo com o imaginário orientalista europeu e norte-americano. O imaginário sobre a “odalisca” fazia parte, principalmente, da pintura orientalista e influenciou o imaginário sexual que ocidentais construíram sobre o ocidente que, por sua vez, influenciou e foi influenciado pela maneira que esses europeus entendiam a dança que era praticada na região. Porém, a relação direta entre a bailarina de dança do ventre e a odalisca é muito característica do Brasil contemporâneo pois até hoje, não vi tal relação em lugar nenhum do mundo. Então o que entendemos aqui como “roupa de odalisca”, que chega a ser fantasia de carnaval, não é assim chamado em nenhum outro lugar que eu tenha tido contato e tem mais influência estética da cultura pop dos Estados Unidos do que de pinturas orientalistas do século XIX em que odaliscas eram pintadas simplesmente nuas. Adicionalmente, bailarinas de dança do ventre são chamadas de “odaliscas” apenas aqui no Brasil. Esse é um fenômeno ainda a ser estudado pois ainda temos que compreender esse orientalismo caracteristicamente brasileiro. Em relação ao figurino utilizado hoje na dança do ventre, ele foi sendo reelaborado ao longo do tempo também através de uma circularidade cultural entre ocidente e oriente.

      2) E respondendo a tua segunda pergunta, acredito não ser uma questão necessariamente de criar uma alternativa à linearidade cronológica, pois nossa maneira de entender história ainda está organizada a partir dela, mas de entende-la de forma crítica, por exemplo, questionando as narrativas evolutivas presentes na maioria de manuais de história. Tais narrativas colocam a Europa como exemplo de modernidade e trazem outras áreas do mundo apenas quando se trata de antiguidade. Nos manuais de dança, por exemplo, é comum que se trate a “história da dança” assim: Bom, primeiro haviam as danças primitivas rituais de povos tribais, então surgiu o ballet e a dança contemporânea que é o último estágio dessa linha evolutiva. Transcender a linearidade cronológica eurocentrada significa entender que não evoluímos a partir África, Ásia e Américas para chegar em Europa. Essas áreas possuem uma modernidade própria, e não devem ser trazidas apenas como exemplos de mundo antigo, primitivo e entendendo suas culturas simplesmente como “tradicionais” e estagnadas no tempo.

      Espero ter respondido as tuas questões!

      Naiara Assunção

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    2. Respondeu maravilhosamente, até salvei para consultas futuras. Muito obrigada!

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