Pepita de Souza Afiune

 

BRASÍLIA, A NOVA AKHETATON


 

Introdução

Brasília, utopia brasileira e sonho de Dom Bosco, a capital que suscitou aspirações e misticismos de diversas naturezas, nasceu sob o signo de Touro e abençoada por Deus. Almejada, planejada e consolidada, a nova capital representou o futuro em meio à vastidão do Planalto Central brasileiro no meio do século XX. Além de uma proposta política, Brasília caminhou por estradas permeadas de misticismo, a começar pelo sonho considerado profético do padre Dom Bosco a respeito de uma terra que mana leite e mel que supostamente estaria localizada entre os paralelos 15 e 20 no meio da América do Sul. Após uma consolidação religiosa ecumênica, Brasília alcançou várias filosofias, religiões e esoterismos, sendo relacionada até mesmo à magia do Antigo Egito.

As representações místicas de Brasília que ecoaram por anos após sua consolidação, adotaram elementos do Egito Antigo como protagonistas da peculiaridade mística da capital.

A priori, travo uma discussão a respeito das reapropriações contemporâneas do Egito Antigo, que são objetos de interesse da História da Arte, sendo pesquisadas por um novo ramo de estudo vinculado à Egiptologia, denominada de Egiptomania. Após esse aporte teórico, desenvolvo uma discussão empírica que objetiva entender de que forma algumas simbologias presentes na arquitetura monumental de Brasília foram reapropriadas por grupos místicos e esotéricos que realizaram essa leitura egiptomaníaca, procurando compreender como esses discursos surgiram e perpetuaram até a atualidade.

 

Estudos de Egiptomania no Brasil

O termo Egiptomania foi criado pelo historiador da arte francês Jean-Marcel Humbert (1994, p. 21), que a define como a interpretação das imagens do Egito readaptadas na atualidade.

A Egiptomania para Margaret Bakos (2007, p. 05) é “o agente de um dos mais longos fenômenos de transferência cultural já contabilizado, matriz de valores e de gostos estéticos mundiais contemporâneos”. A Egiptomania vislumbra as práticas culturais realizadas a partir de elementos do Egito Antigo, e representa a permanência de valores que são acolhidos, modificados e transformados.

Atualmente muitos exemplos de Egiptomania estão presentes tanto em logradouros públicos (praças, edifícios administrativos, cemitérios) quanto privados (instituições religiosas, museus, exposições, galerias, hoteis e residências). No Brasil alguns exemplos já foram pesquisados, como a Pirâmide de Criciúma (SC), a Casa egípcia (RJ), o Motel O Faraó (SP), o Chafariz da pirâmide (RJ), e a Sala egípcia da Biblioteca Estadual do Rio Grande do Sul.

De acordo Margaret Bakos (2014), pode parecer pretensioso afirmar que o Brasil seja herdeiro de uma cultura milenar oriental, como a egípcia. Porém, a partir de suas pesquisas pôde-se perceber que o Egito Antigo deixou um legado na contemporaneidade que alcançou o Brasil, a partir das apropriações de suas simbologias que foram readaptadas e ressignificadas em diversos suportes, como na arquitetura, na mídia e nas novas religiosidades.

A presença de pirâmides na arquitetura brasileira é frequente, conforme Balem & Lia (2013). Os autores afirmam que os primeiros usos de formatos piramidais no Brasil foram em construções oficiais e depois estenderam-se a edificações particulares. O seu início remete ao século XVIII no processo de urbanização do Rio de Janeiro, em que o Mestre Valentim começou a inserir elementos da cultura egípcia em seus projetos, dentre eles estão o Passeio Público (1783) e o Chafariz da Pirâmide (1786). A pirâmide está entre os elementos egípcios mais comuns no Brasil, e evocam “o sentido original das pirâmides egípcias atrelado à ideia de beleza, solidez e permanência, bem como o poder e o místico” (p. 226).

As construções em formato piramidal estão frequentemente relacionadas à egiptomania. Mas Bakos (2004, p. 68) atenta que não se pode concluir que toda pirâmide seja manifestação de egiptomania, pois é preciso que o idealizador a reconheça como tal. A escolha de um formato piramidal pode ser questão puramente estética ou funcional. De tal modo, se faz necessário uma pesquisa que procure por estas informações nas construções de Brasília.


Brasília e as analogias com o Egito Antigo

Brasília é um laboratório privilegiado para se compreender a Egiptomania em termos das discussões que já foram feitas no âmbito nacional. Esse é o ponto de partida para as minhas análises empíricas. Uma discussão que pretenda enveredar-se pelo misticismo acerca da construção da nova capital federal não deve ignorar o monumento da Pedra Fundamental (Figura 1), que apresenta o formato de uma pirâmide-obelisco, feito de pedras artificiais e concreto.

 

Figura 1 – Inauguração da Pedra Fundamental de Brasília



Fonte: CAVALCANTI (1922).

Os obeliscos, monumentos comemorativos por excelência, apresentam formato alongado, com uma base quadrangular. Remontam ao Egito Antigo, quando utilizados no centro dos templos, feitos em blocos monolíticos, como homenagem aos deuses ou para garantir a proteção do local. Etimologicamente, o termo em grego ὀβελίσκο significa “agulha” ou “pino”, sendo interpretado por alguns como um símbolo fálico, representando o poder masculino. Por isso, é geralmente relacionado a divindades masculinas como Baal e Rá. Por apresentar um formato piramidal em seu cume, também é interpretado como um monumento que busca o alcance dos céus e/ou o primeiro raio de sol que desceu sobre a Terra, efetuando assim, uma primeira ligação entre os homens e os deuses.

A Pedra Fundamental foi inaugurada em 1922 na cidade de Planaltina, no âmbito das atividades comemorativas do Centenário da Independência, pelo então presidente Epitácio Pessoa. Esse evento aconteceu, graças aos esforços do deputado goiano Americano do Brasil, que conseguiu aprovação do Congresso Nacional. 

O monumento pesa 5 toneladas de concreto e marca o centro geográfico da América do Sul. Embora com uma conotação não explicitamente mística, os construtores da Pedra Fundamental não abandonaram totalmente o fascínio pagão pelo sol, conforme se percebe no texto da Placa Comemorativa afixada no monumento:

“Sendo Presidente da República o Exmº Sr. Dr. Epitácio da Silva Pessoa, em cumprimento ao disposto no Decreto 4.494, de 18 de janeiro de 1922, foi aqui colocada em 7 de setembro de 1922, ao meio-dia, a Pedra Fundamental da futura Capital Federal dos Estados Unidos do Brasil” (In. VASCONCELOS, 1978, p. 237).

O esforço para que o monumento fosse inaugurado exatamente ao meio-dia do dia 7 de setembro deu-se para captar o momento em que o sol incidisse no seu vértice (ibidem, p. 237).

Na contemporaneidade, os monumentos no formato de obelisco têm sido interpretados por muitos historiadores, como é o caso de Margaret Bakos (2004, p. 73 e 75), que os considera como portadores de um emblema de poder, de homenagem a personalidades, de marcos históricos e/ou de celebração de datas. O obelisco comumente está originalmente vinculado a simbolismos religiosos, apesar de, no Ocidente, ter adquirido significados específicos e independentes.

No caso da Pedra Fundamental de Brasília, é interessante considerar que a mesma teria sido inspirada no sonho de Dom Bosco, demarcando o ponto central do Brasil, localizado entre os paralelos 15 e 20, conforme o sacerdote havia apontado em sua obra Memórias Biográficas.

Seguimentos místicos interpretam o fato de o obelisco ser formado por 33 pedras como um simbolismo maçônico, já que número 33 representa o grau máximo da sua hierarquia. Na verdade, as 33 pedras simbolizam os 33 anos de república no Brasil (de 1889 a 1922). Essas representações reforçam a crença de Brasília como projeto maçônico.

Simbolicamente, para Americano do Brasil, a Pedra Fundamental seria uma forma de inspirar a todos os brasileiros dias promissores e, mesmo com tantas dificuldades, o país estava realizando uma mudança planejada, a partir de todos os seus esforços possíveis, na edificação desta nova capital, que traria o progresso, elemento mais desejado naquele momento. Atualmente, o monumento é objeto de novas leituras, sendo que o destaque principal é o fato de ele ser inspirado no sonho profético de Dom Bosco.

Isto posto, podemos perceber que Brasília desde o assentamento de sua pedra fundamental começou a deixar pistas de uma orientalização que posteriormente marcou a estética dos grupos esotéricos estabelecidos no local.

Existem muitos formatos piramidais na arquitetura monumental de Brasília, como a Igreja Messiânica, o Templo da Boa Vontade, o Conselho Nacional de Pesquisas, a Companhia Energética de Brasília, a Igreja Adventista do 7º dia, a Ermida Dom Bosco e o Teatro Nacional Claudio Santoro (Figura 2) que escolhi para dar destaque dentre as edificações citadas.

 

Figura 2 – Teatro Nacional Claudio Santoro



Fonte: Autoria própria (2018).

O Teatro Nacional foi projetado por Oscar Niemeyer em 1958 com a colaboração do cenógrafo Aldo Calvo. Apresenta 46 metros de altura, o formato de uma pirâmide truncada, e é composto pelos espaços seguintes: Sala Villa-Lobos e Foyer, Sala Martins Pena e Foyer, Sala Alberto Nepomuceno, Espaço Cultural Dercy Gonçalves e Anexo. Sua base apresenta um formato trapezoidal, tendo a sua maior extensão de 125 metros. Passou por várias reformas e teve sua obra oficialmente finalizada em 1981.

O formato de pirâmide truncada pode remeter à arquitetura maia ou asteca. Niemeyer em entrevista concedida a Celso Araújo no ano de 2001, a respeito do formato, esclarece:

“Celso Araújo - Como foi mesmo o ponto de partida em sua concepção do Teatro Nacional? A pirâmide veio antes da encomenda ou na própria inquietação para resolver o problema?

Oscar Niemeyer - Eram dois teatros a projetar e isso explica a solução adotada. [...]

Celso Araújo - E o fato de todos identificarem como uma pirâmide asteca, é correto do ponto de vista arquitetônico?

Oscar Niemeyer - É engraçado. Em arquitetura, qualquer forma que corresponda às funções internas é adequada e, quando ela cria surpresa, e os leigos dela se ocupam curiosos, melhor ainda. O espanto faz parte da boa arquitetura. [...]” (ARAÚJO, 2001).

Analisando os croquis de Niemeyer, percebi que a ideia original seria a concepção de um formato circular para o teatro. Porém, ao deparar-se com problemas de adaptações dos espaços e as estruturas, o arquiteto chegou a este formato. Aldo Calvo e Niemeyer em um artigo esclarecem:


“Nos Teatros Oficiais de Brasília, nosso objetivo foi manter o critério de simplicidade e liberdade plástica, que acreditamos caracteriza os edifícios dessa cidade. [...] Mas nos preocupava também que constituíssem uma obra de interesse arquitetônico, uma obra que fugisse da rotina que a repetição de formas vem estabelecendo e fosse, embora modesta, uma contribuição à técnica e à arte teatral. [...] O projeto dos teatros sofreu diversas modificações, tanto na concepção urbanística de seus elementos quanto na solução dos teatros propriamente dita” (NIEMEYER E CALVO, 1960, p. 02).

Quem realizou uma investigação a respeito dos formatos piramidais presentes em Brasília foi o pesquisador Costa (2014) que acredita que a partir da própria topografia da região, em seus chapadões piramidais, foram traduzidos na forma das edificações da cidade.

“É como se ao marchar pelas terras do Planalto, os desbravadores, pioneiros e idealizadores conservassem a mesma visão dos altiplanos no surgimento das edificações da futura cidade. A ideia do plano e a verticalidade do alto estão aqui de tal modo referenciados servem de modelo e inspiração aos construtores da capital” (p. 109).

Costa analisa que o espaço das construções da região de Brasília foi simbolicamente sustentado a partir de um mesmo traço arquetípico. Mesmo se tratando de uma arquitetura moderna, vários elementos presentes podem remeter a construções antigas. O formato triangular foi o projeto básico para as variantes encontradas no princípio arquitetônico da cidade. Mesmo se um propósito claro em seus discursos, os seus idealizadores explicitaram a forma piramidal como uma base arquetípica da monumentalidade da cidade.

O arquétipo presente na forma piramidal é uma das mais primitivas expressões da relação entre o alto e o baixo. Ele expressa, ao mesmo tempo, a elevação constante vinculada a uma base inferior que a sustenta e a complementa. Este princípio está muito presente em espaços de culto e de celebrações religiosas, mas também pode ser contemplado a partir da vivência humana junto a espaços naturais de acidentes geográficos, como as montanhas e os altiplanos. Neste último caso, a visão humana permite representar a natureza a partir do arquétipo. Em todos estes casos, a forma piramidal parece se manifestar, de forma ‘espontânea’, na mente e na visão daqueles que a observam (ibidem, p. 81).

Apesar de não existir informações a respeito de relações de Niemeyer com o Egito, os edifícios projetados sejam por ele ou por outros arquitetos que apresentam formatos piramidais, passaram a receber essas significações. Discursos esotéricos acreditam que os formatos possam ter se concretizado não intencionalmente nos projetos, e que por influências espirituais, os arquitetos possam ter chegado a esses resultados. É o que a egiptóloga Iara Kern defende em sua obra intitulada De Akhenaton a JK: das Pirâmides a Brasília (1984).

A partir de sua leitura do sonho considerado profético do sacerdote italiano Dom Bosco, Iara Kern desenvolveu uma pesquisa relacionando a cidade de Brasília com a cidade de Akhetaton no Egito, na qual, ela também defende que Juscelino Kubistchek seria uma reencarnação do faraó Akhenaton. Iara Kern afirmava que sua pesquisa tinha um caráter místico, e passou a receber convites de vários grupos esotéricos para ministrar palestras.

Kern (1984) afirma que esses formatos piramidais não foram idealizados por seus arquitetos de forma intencional, isso teria ocorrido de forma natural, como se eles fossem reencarnações de sacerdotes ou arquitetos egípcios. A obra resultou o documentário Brasília Secreta (1984), que apresenta uma entrevista realizada com o autor da pirâmide da CEB, Gladson da Rocha.

“Para o projeto da CEB, na L2 Norte, ... eu não escolhi a forma de pirâmide. Eu fui convidado para participar de um concurso, e aceitei o convite, fomos uma meia dúzia de arquitetos e afinal, comecei a trabalhar, pensar sobre o programa que me foi fornecido, e finalmente, ... como tudo que acontece comigo, um dia, veio a resposta. [...] quando eu fiz a maquete, vi que era uma pirâmide. Eu não tinha pensado em pirâmide absolutamente, e muito menos, né ... em Sakára. Surgiu uma pirâmide escalonada, com proporções bem parecidas com Sakára. [...] Não, eu nem pensei, eu não sabia, agora que me dou conta [...] Me veio uma lembrança de um caso que aconteceu comigo em Los Angeles [...] quando uma senhora, uma jovem senhora, vinha no sentido contrário ao meu, e a uns dez metros assim de distância, ela botou as mãos pra cima com os olhos bem acesos assim para mim, .... e botou as mãos para cima dizendo “Que que é isso? O que que eu estou vendo? Não é possível uma coisa dessas! ” E eu me espantei e olhei assim pra cima. E ela me disse “Não, tudo bem, é que eu tenho certeza que o senhor foi um sacerdote egípcio a três mil e quinhentos anos passados”. (ROCHA in TORRE, 1984).

Desde os 12 anos de idade Iara Kern era apaixonada pelo Egito Antigo, e pertencia a uma família protestante, o que a levou a entrar em choque entre os seus preceitos e crenças. Iara fez a sua graduação em História na Universidade de Santa Maria e o Mestrado em Arqueologia no Queen’s (EUA). No período do seu Mestrado, Iara assistiu a um discurso de um dos diretores da Nasa que acreditava que o Planalto Central brasileiro era o local mais seguro do mundo para a transição de Eras, pois a região foi mar há mais de 450 milhões de anos e nela a civilização teria se principiado (LUZ, 1986, p. 36).

Dioclécio Luz (1986, p. 35) conta que Iara Kern realizou o seu Doutorado em Egiptologia na Universidade do Cairo, tendo começado em 1973, ano em que a pesquisadora esteve com os Cóptas participando de seus rituais. Em um deles, Iara foi informada pelo sacerdote que uma vida passada, teria feito parte da Sexta Dinastia egípcia, tema do qual ela trabalhava em sua tese e que não era conhecimento da comunidade. Iara conheceu a sua múmia e de sua família, que estavam no Museu de Sakara, no Cairo, eram uma família real. Descobriu que teve 11 reencarnações no Egito.

Kern defende que Brasília teria sido construída inspirada na cidade antiga egípcia Akhetaton e todas as suas edificações da arquitetura monumental seriam inspiradas pelas suas edificações. “Assim como no Egito Antigo emergiam monumentos em homenagem aos seus fundadores, em Brasília temos uma Ermida em homenagem a D. Bosco” (KERN, 1984, p. 21).

A hipótese de Kern idealiza que Brasília é predestinada a ser o Celeiro do Mundo, a terra de onde jorrará leite e mel, precisamente confirmando sua crença na profecia de Dom Bosco. Acrescenta que quando escavarem Brasília, encontrarão urânio e petróleo, fato também apontado pelo sacerdote. “Assim como no Egito Antigo emergiam monumentos em homenagem aos seus fundadores, em Brasília temos uma Ermida em homenagem a D. Bosco” (Ibidem, p. 21). Todos os templos no Egito Antigo eram cercados por água, com exceção de suas entradas, e em Brasília, as suas edificações também apresentam esta característica.

Dentre uma das semelhanças estabelecidas por Kern (1984) entre as edificações egípcias e brasilienses estava o prédio da CEB – Companhia Energética de Brasília (demolido em 2013), que foi relacionado à Pirâmide de Saqqara, no Egito (Figura 3). Kern defendia que as dimensões de ambas as pirâmides seriam semelhantes, e que a pirâmide egípcia seria uma guardiã de energia, só que nesse caso, uma energia metafísica, da mesma forma que a pirâmide da CEB promovia energia para Brasília.

 

Figura 3 – Pirâmide da CEB (Brasília) e Pirâmide de Saqqara (Egito)

Fonte: Kern (1984, p. 107). Ilustração de Byron de Quevedo.


O Egito recebeu migrações das mais variadas etnias, formando uma nação heterogênea e acolhedora, da mesma forma que Brasília, que por sua vez, apresenta a característica de cidade cosmopolita. Kern defende que a Pirâmide de Degraus de Sakára, a estrutura mais antiga de pedra talhada no mundo, formava uma cidade residencial, sob a proteção do pássaro Íbis, com o objetivo de guardar energia cósmica. A pirâmide possuía sessenta e um metros de altura e era também um verdadeiro museu de objetos preciosos, como as estátuas do faraó. Acreditava-se que a pirâmide era detentora de um tesouro inimaginável que teria sido roubado. Desta forma, a pirâmide da CEB possuía as mesmas medidas que a pirâmide de Sakára, e também guardaria energia, só que neste caso, a energia física.

Kern também analisa vários edifícios de Brasília, como o Congresso Nacional, a Catedral Metropolitana, o Teatro Nacional, a obra “Meteoro” de Bruno Giorgi no Palácio do Itamaraty, o Cemitério de Brasília, o edifício da Igreja Católica de Santa Cruz, o edifício do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPQ), o Memorial JK, dentre outros.

A relação que a obra sustenta entre o faraó Akhenaton e o presidente JK é embasada em muitos dos discursos do presidente, que por sua vez, demonstrava conhecimento e admiração pela antiguidade egípcia. Kern cita trechos da obra Meu caminho para Brasília (1974) de autoria do presidente, para defender que ele perpetrava algumas relações entre Brasília e o Egito, bem como a sua inspiração no faraó Akhenaton:

“Hoje, tanto tempo decorrido, pergunto-me, às vezes, se essa admiração por Akhenaton, surgida na mocidade, não constituiu a chama, distante e de certo modo romântica, que acendeu e alimentou meu ideal, realizado na maturidade, de construir, no Planalto Central, Brasília – a nova Capital do Brasil” (KUBITSCHEK apud KERN, 1984, p. 60).

Segundo Kern, JK também mencionou Akhenaton em outros trechos: “Como Aknaton escreveu o Hino ao Sol, na inauguração de sua cidade planejada, hoje em pleno século XX tudo se repete, pois é o mesmo sol que nos ilumina” (KUBITSCHEK apud KERN, 1984, p. 67).

Kern cita uma série de discursos do presidente em outras de suas obras, para insistir que ele teria uma espécie de relação muito forte com o antigo faraó, ou que seria a própria reencarnação.

Aproveito a fala de Iara Kern para investigar nas autobiografias de JK as suas relações com o Egito Antigo, para procurar entender que JK procurou imprimir em suas autobiografias um discurso místico relacionado ao Egito. Então Iara Kern se apropriou destes discursos para mistificar a própria figura de JK.

Em sua autobiografia Meu caminho para Brasília (1974) JK relata a sua viagem ao Egito, demonstrando um deslumbramento perante a sua antiga cultura:

“A visão do Egito constituiu, para mim, um espetáculo inesquecível. Ali estavam os túmulos dos faraós, as lendárias pirâmides, os santuários Karnak e Luxor, o misterioso deserto e o velho Nilo, correndo grave e solene através de um universo de areia. Tudo me parecia fantasmagórico, olhando aquela paisagem áspera, amarela de pó, tive a impressão de que desfilavam diante dos meus olhos – numa compreensível reversão histórica – as figuras de César, Marco Antônio, Cleópatra, seguidos, a distância, pelos chefes das diferentes dinastias, com sua indumentária característica e seus milhares de servidores. Recordei a beleza, aureolada pelo infortúnio, da Rainha Nefertiti e o visionarismo do seu marido Amenófis IV ou Akhenaton – o “Faraó herege”. Apesar da minha formação religiosa, não escapei do fascínio daquela estranha personalidade, misto de sonho e audácia, cuja obra de reformador constituiu, durante algum tempo, uma das preocupações do meu espírito” (KUBITSCHEK, 1974, p. 110 – 111).

JK diz que as obras de Akhenaton foram durante algum tempo, preocupação de seu espírito. Podemos analisar mais adiante no seu depoimento, que ele descreve todo o trabalho do faraó e ressalta sobre a mudança da capital do Egito, demonstrando claramente a sua dedicação ao estudo deste faraó, o que pode ter lhe influenciado em seus feitos no Brasil.

“O Faraó tinha, então, apenas dezenove anos de idade. E, apesar da sua juventude, compreendeu que sua revolução religiosa só teria êxito se procedesse, igualmente, a uma mudança de sede da monarquia, de forma a subtraí-la à tutela milenar dos sacerdotes dos antigos ídolos, especialmente dos de Amon. Surgiu, assim, a ideia de mudança da capital do Egito. Ao invés de Tebas – a monarquia iria funcionar em Ekhenaton, a “Cidade do Horizonte de Aton”. O plano de transferência, apesar de tão recuado no tempo – quase quatro mil anos atrás – foi levado a efeito com uma técnica e um planejamento dignos do século XX. Arquitetos foram contratados. Artífices vieram de todas as partes do Império. Engenheiros, astrônomos, técnicos em hidráulica, britadores, escultores, pedreiros especializados foram mobilizados. O local escolhido foi Tell El-Amarna, um vale situado entre o Nilo e as encostas rochosas do deserto. [...]” (KUBITSCHEK, 1974, p. 111).

Analisando esse relato sem considerar o local o qual JK se refere, essa história contada pelo ex-presidente muito nos remete à mudança da capital para Brasília. Outra parte que vale a pena citar é quando JK conta a respeito de seu encontro com a princesa Marina da Grécia, duquesa de Kent. Quando a princesa conheceu Brasília, por volta de 1958, ainda apenas um canteiro de obras, ela teria dito para o ex-presidente: “O senhor constrói, Presidente, como os faraós do Antigo Egito o faziam”. (p. 113). JK ter-lhe-ia respondido:

“Quando à monumentalidade, é possível que sim, Alteza, mas quanto aos objetivos, seguimos caminhos diametralmente opostos. Os faraós construíram para os mortos, e eu construo para as gerações do futuro” (KUBITSCHEK, 1974, p. 113).

 

Considerações Finais

A relação estabelecida entre os ícones da construção de Brasília e elementos do Egito Antigo foi dessa forma empreendida a partir de interconexões simbólicas entre os empreendedores do projeto da capital com os legados culturais orientais milenares. Quero dizer que eles (JK e Oscar Niemeyer por exemplo) carregavam uma bagagem cultural que os proporcionaram imprimir em seus trabalhos referências simbólicas diversas. Mesmo que não tenha ocorrido algo intencional, de certa forma podemos perceber que alguns elementos estiveram presentes como referências artísticas ou inspirações.

Iara Kern vasculhou as autobiografias, discursos, projetos e iconografias, encontrando essas referências nos discursos, fato que não entrou em choque com os artifícios políticos que possuíam o mesmo objetivo de estabelecer Brasília como um local sagrado. Posteriormente, esta teoria de Kern auferiu popularidade no meio esotérico, sendo debatida até os dias de hoje entre muitos grupos estabelecidos na região.

 

Referências

Pepita de Souza Afiune é doutoranda em História pela Universidade Federal de Goiás. Bolsista CAPES/FAPEG. Mestra em Ciências Sociais e Humanidades (UEG). Contato: pepita_af@hotmail.com

 

ARAÚJO, Celso. Entrevista com Oscar Niemeyer. In: Doc Brazilia. Brasília, 12 de novembro de 2001. Disponível em: http://doc.brazilia.jor.br/Centro/CCR-Teatro-Nacional-entrevista-Niemeyer-2001.shtml. Acesso em 02 de junho de 2020.

BAKOS, Margaret (Org.). Egiptomania: O Egito no Brasil. São Paulo: Paris Editorial, 2004.

BAKOS, Margaret. A Egiptomania na América do Sul: um estudo multidisciplinar e comparativo. In: XXIV Simpósio Nacional de História. História e Multidisciplinaridade: territórios e deslocamentos. São Leopoldo (RS): UNISINOS, 2007. Disponível em:

http://anais.anpuh.org/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S24.1196.pdf. Acesso em 31 de julho de 2017.

BAKOS, Margaret. Fatos e mitos do Egito Antigo. 3ª ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014.

BALEM, Wellington Rafael & LIA, Cristine Fortes. História e egiptomania de uma pirâmide em Caxias do Sul (1984 – 2006). In: Revista Eletrônica em Antiguidade NEARCO. Ano VI. n. 2. Rio de Janeiro: UERJ, 2013. p. 221 – 240. Disponível em: http://pt.calameo.com/read/0008977655a8d4f2e94a3. Acesso em: 21 de março de 2016.

COSTA, Josias Alves da. As manifestações do arquétipo de espaço sagrado na geografia de Brasília. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) - Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2014.

HUMBERT, Jean-Marcel. Egyptomania: Egypt in Western Art, 1730 – 1930. Ottawa: National Gallery of Canada, 1994.

KERN, Iara. De Aknaton a JK: das Pirâmides a Brasília. 2ª ed. Brasília: Ed. Gráfica Ipiranga Ltda., 1984.

KUBITSCHEK, Juscelino. Meu caminho para Brasília. Vol 1. Rio de Janeiro: Bloch, 1974.

LUZ, Dioclécio. Roteiro Mágico de Brasília. Ilustração de Antônio José. Brasília: CODEPLAN, 1986.

NIEMEYER, Oscar; CALVO, Aldo. Teatros Oficiais no Setor Cultural de Brasília. Módulo, Rio de Janeiro, v. 3, n. 17, abril, 1960.

TORRE, Pedro. Brasília Secreta. Documentário. Brasília: II Pórtico Editora, 1984. 24 minutos e 38 segundos.

VASCONCELOS, Adirson. A mudança da capital. 1ª ed. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1978.

 

2 comentários:

  1. Boa noite, Pepita. Olha, nunca tinha olhado para a arquitetura de Brasília a partir desse ponto de vista! Que bom que você compartilhou seu texto aqui. Agora sinto de forma urgente, que assim que terminar a pandemia ou houver uma vacina, preciso voltar à Brasília e ir nesses espaços com a sua percepção. Parabéns!

    Não sei se você conhece, mas tem uma ex-aluna do Mestrado em Arqueologia da UFS, Marcia Jamille, que tem um canal do YouTube dedicado á Egiptologia chamado "Arqueologia pelo mundo" (https://www.youtube.com/watch?v=kzCVTWH6Zag), vale a pena dar uma olhada!

    Esse tema é sua pesquisa de Doutorado?
    Você acredita que esse "caráter de monumentalidade" e influência egípcia favoreceu a chancela da Unesco sobre Brasília como patrimônio da humanidade?
    No Memorial JK, a sala escura de seu túmulo possui essa influência?

    Muito obrigada por esse trabalho tão bacana!

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  2. Oi Janaína! Muito obrigada pelas suas considerações! Fico muito feliz de saber que meu trabalho está atraindo esses olhares curiosos!
    Sobre a Márcia Jamille, sim, eu conheço o canal e já li a dissertação dela! Achei muito interessante a forma que ela fez de criar um canal para falar sobre os temas relacionados ao Antigo Egito, deu para perceber que ela é apaixonada por isso! Achei o trabalho dela maravilhoso também e até cito na minha tese como uma das pesquisas de destaque realizadas no Brasil no ramo da Egiptologia.
    Esse tema é sim parte da minha tese de Doutorado, um recorte. Eu analiso as várias representações que surgiram a respeito de Brasília, sua fundação, e arquitetura, e essa egiptomaníaca é apenas uma delas.
    Acredito que essa influência egípcia nas interpretações da arquitetura monumental de Brasília se deve ao movimento esotérico que iniciou na década de 60 e tomou força no âmbito dos primeiros momentos de vida da nova capital a partir das utopias e profecias de Dom Bosco. Porém, as representações egípcias não estão diretamente atreladas ao reconhecimento da UNESCO de Brasília como Patrimônio Cultural da Humanidade em 1987. Houve inicialmente uma mobilização do governador de Brasília e diplomatas com o objetivo de angariar mais verbas para a manutenção e salvaguarda do patrimônio histórico, também cuidando para que o projeto original não fosse alterado. Então foram os ideais modernistas, utópicos, o caráter monumental e futurista da arquitetura, a formação dos espaços públicos preocupando-se com a sua funcionalidade e caráter de sociabilidade, todo o legado deixado pelos construtores, dentre outros fatores que influenciaram nessa chancela. Sobre o Memorial Jk, tanto o seu formato e a câmara mortuária do ex-presidente, não estava no projeto de Oscar Niemeyer. O que ocorreram foram apropriações contemporâneas de cunho místico que estabeleceram esses paralelos anacrônicos e que ganharam força no meio esotérico. Agradeço muito a sua contribuição! Grande Abraço!
    Pepita de Souza Afiune

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